Angélica Borges, graduada e filha de porteiro
“Filha de um porteiro, periférica e na segunda graduação. Presente!”
Uma polêmica foi destaque nos jornais e redes sociais, recentemente. O Ministro da Economia, Paulo Guedes, fez comentários discrimatórios, infelizes e sem perfeito conhecimento de causa. Afirmou que o porteiro de seu prédio contou-lhe que seu filho teria tirado zero no vestibular de uma faculdade particular e mesmo assim conseguido financiamento estudantil (FIES). A fala, baseada em algumas inverdades, foi argumento para Guedes concluir que o FIES era uma bagunça e todo mundo conseguia tal financiamento.
Não vamos tratar do desconhecimento de causa do Ministro, mas da discriminação implícita em sua fala infeliz, para que o amigo leitor entenda a alienação do nosso Ministro num assunto tão caro, como deve ser tratada a educação num país em desenvolvimento. O Convergente entrevistou Angélica Borges de Vila Velha – ES, filha de porteiro e aluna de duas graduações (uma em andamento), com muito orgulho.
Convergente: Angélica, nos conte um pouco sobre sua história familiar:
Angélica: Sou a caçula, vindo de uma família de 7 irmãos, de classe baixa, moradora de região periférica. Meu pai sempre trabalhou por um salário mínimo, em trabalhos precários. Quando desempregado e quando empregado, ele trabalhava em funções de baixa remuneração, como vigia ou porteiro. Minha mãe era dona de casa, mas sempre ajudou, nas finanças da casa, fazendo faxinas, como lavadeira e vendendo roupas. Eu e meu irmãos, tirando a minha irmã com síndrome de down, sempre trabalhamos desde a adolescência para contribuir com as despesas da casa. É evidente que isso nos tirava tempo para escola e somente eu, com muito sacrifício, terminei os estudos.
A minha formação veio em um período difícil, quando assumi todas as responsabilidades da casa com o adoecimento e depois falecimento da minha mãe, além de ter que cuidar do meu pai e minha irmã "especial". Meu pai perdeu todos os movimentos corporais, então os cuidados com ele eram em tempo integral. Meus irmãos já eram casados e com suas próprias dificuldades, não podiam compartilhar comigo essa responsabilidade. Mesmo acumulando as atividades domésticas, cuidadora e trabalho (nesse tempo já tinha conseguido me adaptar para o trabalho remoto), consegui terminar meu curso em serviço social.
Embora eu tenha me formado com louvor, eu não pude atuar na profissão, o que por sinal adoraria, pois o salário não atenderia às minhas necessidades e não teria como cuidar do meu pai com o salário de Assistente Social. Assim, atuei somente um ano como voluntária na prefeitura de Vila Velha, em um abrigo para pessoas em situação de rua. Porém a graduação me deu o status que o mercado exigia para avançar na minha outra função, em Pesquisa de Opinião e Mercado, com isso tive a chance de abrir minha própria consultoria e hoje eu e minha família podemos nos beneficiar da minha condição financeira melhorada.
Convergente: Como foi sua rotina estudantil?
Angélica: Foi sempre precária desde o ensino primário até o ensino médio. No primário, o ensino foi interrompido por greves, falta de professores, faltas de recursos básicos para a manutenção dos alunos. No ensino fundamental tivemos greves e a única escola do bairro ficou desativada para reformas por estar condenada e levaram alguns meses até acharem um espaço para servir de salas temporárias. Além disso, eu quase abandonei os estudos por causa do trabalho.
Eu comecei a trabalhar aos 13 anos e, também, por questões familiares. Nesse tempo, alguns professores me ajudaram e não me deixaram sair, eles se revezavam no recreio para dá um reforço das aulas que eu havia perdido e abonaram minhas faltas. Eles foram fundamentais para minha formação, nunca esqueci e sempre lembrava deles quando pensava que não dava para continuar. Hoje, sou amiga de uma dessas professoras. Já, no ensino médio, eu continuava trabalhando de dia e estudava à noite.
Mesmo o bairro ficando cada vez mais perigoso e as condições para voltar para casa, depois da escola, mais assustadoras, eu encarei. Sofri com algumas situações de perigo, depois uma prima passou a estudar a noite e a gente se protegia para voltar para casa, que era na mesma rua. Além do risco, ficamos quase um ano em greve, foi quando o governo do estado lançou o PROED. Era uma apostila com todas as matérias do ano letivo e no final os professores corrigiam as provas no quadro, já que não podiam reprovar ninguém.
As condições para prestar vestibular na UFES eram quase impossíveis, não tínhamos estudado quase nada e o aprendizado ficou comprometido. Então, concorri em outras faculdades como treineira e todos anos eu tentava UFES, porém sempre passava fora do número de vagas. Como eu sempre passei nas tentativas das instituições privadas em melhor colocação, resolvi seguir essa opção, o que era na maioria das vezes inviável. Até, finalmente, aparecer o ProUni, onde consegui uma bolsa 100%, integral… Este ano, passei na UFES, mas ainda estou decidindo se realmente quero fazer o curso, talvez eu não tenha tempo de me dedicar as grades que exigem, devido o meu trabalho.
Convergente: Como o FIES ajudou na sua formação?
Angélica: Bem, eu posso dizer como o FIES não me ajudou antes de passar por mudanças nas gestões progressistas. Quando eu passei em três vestibulares de instituições particulares, fiz para treinar e tentar a UFES com mais preparo. Foi uma surpresa passar em todas as tentativas, mas eu sabia que não poderia pagar. Não contei nada para ninguém e tentei o FIES, só que a época, dependia de 2 avalistas que era impossível no meu círculo de convivência. A maioria dos meus conhecidos eram de pessoas de baixa renda. Também, era preciso arcar com pagamento de dois semestres, como era exigido na carência, então eu desisti, não dava para entrar por essa via.
Eu tinha passado para a primeira turma de engenheiros do petróleo do estado na UVV. Eram 20 vagas e eu tentei bolsas, liguei para várias empresas para tentar estágio, mas todos falavam que eu tinha que estar matriculada e ao menos no segundo período. Basicamente, todos que terminaram o curso dessa turma foram absorvidos pelo mercado, foi no período da descoberta do pré-sal. Os outros dois cursos, foram direito e outro de engenharia, também não consegui bolsas e nem fui aprovada no FIES. Se no período que eu passei para engenharia do petróleo tivesse as mesmas condições atuais, hoje eu estaria no corpo de engenheiros da Petrobrás, ou em alguma outra empresa privada. Isso teria mudado a história da minha família, talvez meus pais teriam vivido mais tempo, com um plano de saúde e condições de vida melhores.
Atualmente eles não exigem fiadores e nem carência, você tem acesso imediato ao crédito e graças a estas mudanças, muitos jovens têm acesso a essa opção para realizar seus sonhos. Um amigo muito querido, se formou em Direito graças as mudanças no sistema de financiamento estudantil. É um grande advogado, ajuda várias pessoas da comunidade dele e foi um espelho para outros tentarem. Esse é outro benefício dos programas que visam a formação de pessoas de baixa renda, dentro das comunidades. É uma ruptura essencial para a mudança de comportamento e evolução da sociedade. Outros jovens também se motivam e o estudo passa a fazer parte da rotina familiar e das conversas entre os amigos. Assim nascem programas sociais e, por via de regra, direitos são debatidos como direitos e não esmola. E o conhecimento passa a ser uma busca constante.
Convergente: Qual a importância dos seus pais na sua formação?
Angélica: Perseverança e superação, essa foi a mensagem deles! Eu queria romper com um ciclo e promover mudanças na nossa família e, se possível, na minha vizinhança. Ser exemplo para os meus sobrinhos, também, continuarem os estudos e ajudarem seus pais. Eu via nos meus pais a contradição da fragilidade e a resiliência. Ver como eles conseguiram, mesmo diante de tantas barreiras, e acharam solução para dificuldades do dia a dia, foi pura inspiração. Eram pessoas simples e admiráveis. Minha mãe era uma pessoa com um potencial incrível: inteligência acima da média, era lavadeira, vendia roupas como complemento de renda, conselheira nas horas vaga para vizinhança.
Já o meu pai, trabalhava como porteiro ou vigia Tinha uma honestidade sem igual, nunca negou ajuda a ninguém, mesmo sendo uma pessoa de poucos recursos. Era analfabeto e se apoiava na minha mãe para tudo. Ela tinha feito até 7° série e era quem tomava as decisões que necessitava de leitura. Eu admirava a força que eles tinham juntos, e o esforço que faziam para criar tantos filhos, sendo uma com síndrome de down, o que demandava cuidados especiais. Mas por algum motivo, essa força não se traduzia em apoio e incentivo para os filhos estudarem, meu pai se irritava quando estávamos lendo um livro e brigava com a gente, falava que a gente tinha que trabalhar e não perder tempo com bobagens e minha mãe quase nunca o contestava.
O resultado disso foi que dos 7 filhos, somente eu concluí o ensino médio e depois o ensino superior. Hoje, consigo fazer uma análise mais complexa sobre as razões que os fizeram fazer certas escolhas e passei a entender melhor os motivos. Meu maior orgulho foi ter conseguido fazer meu pai se matricular no ensino para adultos. Quando ele aprendeu a ler e escrever foi emocionante, foi incrível quando ele trouxe livros da biblioteca como tarefa de casa. Ele passava horas lendo e sempre me pedia ajuda nas tarefas. No dia que ele conseguiu ler e escrever com mais segurança, passou a acompanhar minha mãe na igreja. Ele se sentia mais seguro para participar de leituras bíblicas e, também, não faltava a escola dominical, afinal ele já podia participar das atividades, rs. Foi ótimo para a relação deles e para sua autoestima, já que ele não precisava mais da ajuda de minha mãe para ler.
Convergente: Nos descreva seu sentimento com a fala do Ministro da Economia Paulo Guedes?
Angélica: Como pesquisadora, senti vontade de estudar mais sobre a elite brasileira: quanto à alienação da realidade do país em que vivem e como isso é um câncer para o desenvolvimento da nação. São gestores sem nenhuma empatia, com políticas públicas de baixa eficiência e nenhum impacto ou compromisso para diminuir as desigualdades do país. Como parte integrante da sociedade, sinto que pessoas sem amor estão no poder e o Ministro Paulo Guedes é um deles.
Convergente: Na sua opinião o Brasil é um país desigual? Descreva sua percepção sobre isso?
Angélica: Sem sombra de dúvidas é um país extremamente desigual. Ainda somos uma democracia jovem, com ranhuras da escravidão, com discurso saudosista de uma época terrível. A desigualdade conta a história do Brasil da maneira mais perversa possível. São comunidades, na maioria, preta, paupérrima, sem quaisquer recursos que viabilizem uma mudança que realmente faça a diferença para este contingente populacional. Onde mulheres negras, como era minha mãe, tenham que escolher entre comer, ou deixar comida para os filhos. Onde pessoas analfabetas, como meu pai, exijam que seus filhos vendam picolé, carreguem carrinhos nas feiras para ganhar um trocado, façam faxina ou sejam babás, ao invés de se dedicarem aos estudos e ainda acham que isto é uma virtude. Onde o trabalho infantil é romantizado e as dificuldades, impostas por um sistema falido, sejam vistas como obstáculos naturais ao desenvolvimento humano. Acham a miséria um fenômeno natural e não produzida intencionalmente para se manter o statu quo. Onde as mesmas pessoas brancas e ricas (as mesmas que nunca superaram a abolição dos escravos), ditam regras degradantes, formando um exército de reserva de mão de obra alienada, que se tornam uma legião de pessoas descartáveis e miseráveis, em uma pirâmide falaciosa. Onde as regras tem algumas vantagens ou brechas, para que os escolhidos sejam sempre os mesmos merecedores (meritocracia) e estejam sempre no topo de geração em geração.
Convergente: O que você diria aos brasileiros que não precisam do FIES?
Angélica: Que bom! Vocês são privilegiados! Aproveitem o seu privilégio e deixem os outros em paz em sua batalha pelo direito ao estudo.
Convergente: O que você diria ao Senhor Paulo Guedes?
Angélica: Não existe nada que se possa dizer a um extremista e facista. O extremista se move por suas paixões e convicções irrefutáveis, já o fascista pelo poder absoluto, onde ele pode praticar seus ideais autoritários sem qualquer interferência ou mediação. Com o fascista não se dialoga, ele precisa ser derrotado nas suas retóricas e impedido de exercer o poder. Esta é uma obrigação de todos que lutam por um país mais justo e democrático: não permitir que ganhem espaço e vencê-los para que não permaneçam no poder.
Talvez, como única e última tentativa, dizer, vá conhecer o Brasil de verdade, pisar no chão de terra com esgoto correndo das comunidades, ver os empilhados de barracos das favelas, visitar os hospitais públicos, a seca que enfrentam os povos dos sertões do nordeste, os dias que atravessam de barco para comprar comida, como os ribeirinhos do norte, falar com estudantes e cientistas que lutam com a falta de recursos e laboratórios equipados para fazer pesquisa, e tantas outras coisas… Ou seja, vá conhecer o Brasil de fato! Quem sabe assim se sensibilize, aprenda e faça algo a respeito.