Sou branca e nunca fui racista! Será?
Um dia descobri preconceito em mim e me vi vítima do racismo estrutural
Se você leu e entendeu o título desta matéria é provável que não tenha concordado. Daí você começa a ler meu artigo com desconfiança e armado até os dentes com vontade de me contestar: "não existe vítima branca de racismo estrutural! Você está louca?" Tudo bem, eu já ouvi isto antes!
Será que alguns brancos não são mesmo vítimas do racismo estrutural? Tente não me julgar antes de ler meu argumento. E tenha em mente, que eu sei muito bem que as maiores vítimas do racismo estrutural, realmente, são os negros pobres. Porém, se não entendermos como os brancos, também, se tornam vítimas desta doença social, provavelmente não conseguiremos resolver o problema de maneira mais eficiente.
Há um consenso entre especialistas, que crianças pobres e negras, sem estrutura familiar e amparo do Estado, super vulneráveis, têm maior probabilidade de enveredarem nos caminhos do crime. Com certeza, podem ser tratadas como vítimas das circunstâncias e do abandono da sociedade.
Tentar exigir dedicação exclusiva na educação dos filhos de uma família desestruturada, que gasta todo seu tempo e força para sobreviver é, no mínimo, romântico demais. Entendido isto, se o ambiente desfavorável pode levar estas crianças a delinquência, por que não podemos aplicar o mesmo princípio a uma criança rica e branca criada num ambiente hostil ao negro ser vítima do racismo? Será que um ambiente racista não teria a mesma influência negativa sobre a formação de nossas crianças e jovens brancos os tornando vilões “inocentes” desta estrutura?
Vou te contar um triste episódio da minha vida, um momento de grande decepção comigo mesma. Mas, por favor, prometa não me crucificar!
Fui criada no Rio de Janeiro, numa família pobre de brancos em ascensão para classe média. Como meus pais vieram de famílias mais pobres ainda, nosso foco sempre foi estudos e trabalho para melhorar nossa condição social. Tínhamos esta condição, porque era suficiente que apenas meu pai trabalhasse para que minha mãe ficasse em casa para cuidar dos afazeres domésticos e de nossa educação.
Morávamos muito próximo de comunidades (favelas) e estudávamos em escolas públicas, mais tarde, tivemos a oportunidade de estudar em escola confessional com vagas para bolsistas. Por tanto, pobres e pretos sempre estiveram entre nossos amigos de convivência.
Naquela época, nos anos 80, era muito comum piadas depreciativas sobre negros (peço desculpas por mencionar isso. Lembrar, me faz sentir a mesma tristeza de quando as ouvia.). A segregação social era claramente definida e a desumanização da ditadura militar, também, contribuía em muito para este ambiente seletivamente cruel. Se você não viveu nesta época no Rio de Janeiro ou em São Paulo, provavelmente não compreenderá perfeitamente o contexto e o que vou contar.
Sempre tive amigos amados que eram negros e moradores de favela. Como contei, fui aluna de escolas públicas e uma confessional no RJ, onde eram dadas bolsas aos alunos carentes. Devido a minha educação familiar, nunca me dei muito bem com pessoas arrogantes e talvez, por isso, meus melhores amigos eram crianças simples e entre elas pobres e negras.
Por diversos motivos e conjunturas, esses amigos das comunidades não se destacavam como melhores alunos. A realidade dessas crianças era de uma situação familiar muito precária, alguns, se quer, tinham água com fartura para tomar banho todos os dias, ou alimento decente para se manterem nas melhores condições físicas e mentais, quanto mais ter um ambiente apropriado para estudos complementares.
Ainda que eu não tivesse capacidade para compreender toda complexidade de tal contexto em que estávamos inseridos, sempre me sentia emocionalmente ligada àquelas crianças, que por várias vezes eram rejeitadas por outros colegas. Me entristecia notar algum desprezo e o bullying que sofriam. Tudo isso só nos aproximava ainda mais.
A grande tragédia brasileira foi nossos negros serem privados de competir em igualdade de condições ao terem que priorizar a sobrevivência de suas famílias depois de um grande período de exploração da sua gente e o abandono a própria sorte após a escravidão.
Nosso país é jovem e toda esta exploração é recente, sendo pouco, ou nada, feito suficientemente para compensar o que roubamos dos negros depois de os arrancarmos de seus países de origem e os forçarmos a nos servir por várias gerações. Não lhes demos condições dignas de prepararem seus filhos intelectualmente, enquanto explorávamos seu trabalho escravo e fomos ainda mais negligentes depois de os "libertarmos" sem compensá-los (coloquei o termo liberdade entre aspas, porque com a abolição apenas lhes oferecemos trocar o tipo de "algemas").
Até em nossos dias, pobres e negros não podem competir por igualdade sendo em sua maioria, herdeira de um injusto processo de abandono dos escravos libertos e relegados a própria miséria em nossa história recente. Estes herdeiros, ainda hoje sofrem com a injustiça social. Por isso faz-se urgente que criemos políticas pública cada vez mais inclusivas. E uma educação que possa, efetivamente, mudar o paradigma dos jovens de "consciências brancas" que a cor não diferencia nossas capacidades como seres humanos e que a socialização das oportunidades não é um favor, mas um dever e justiça para com os negros pobres.
A tal meritocracia evocada ultimamente, diante de tamanha desigualdade social, é um sofisma que deveríamos repudiar com toda força. É bem verdade que alguns conseguem romper a casca dura da injustiça social, mas a exceção não pode definir a regra e nos acomodar como cidadãos.
Continuando meu relato, eu ainda era muito jovem (20 anos, há 36 anos), quando meu primeiro filho recém-nascido precisou de uma cirurgia com urgência. Fomos aconselhados pelos médicos assistentes, que o bebê fosse imediatamente operado assim que nascesse. Fui indicada a um cirurgião pediátrico muito bem avaliado e não demorei em marcar a consulta.
Chegamos ao consultório com nosso amado bebezinho na hora marcada. Fomos chamados e quando a porta do consultório se abriu vi um médico negro, muito negro, nos esperando. Meu choque foi automático. Nunca tinha visto um médico daquela cor. De forma inconsciente e instantânea, minha mente bugou. Um alerta disparou, algo foi julgado estranho, fora do lugar.
Por instantes, involuntariamente, um desconhecido preconceito me paralisou e prejulguei aquele médico incapaz. Foi um pensamento tão instintivo e rápido, que eu nem sei como explicar o que senti. Imediatamente me critiquei em pensamento. Questionei a mim mesma: "que atitude é esta, Carmem?". Continuei e afirmei, para mim mesma, que ter aquele pensamento negativo não era justo e eu não deveria pensar assim. Assim, aquele instante não me deu tempo para uma análise mais complexa.
Naquele momento, me encontrei com uma estranha. Aquela não era eu! Fiquei aterrorizada e senti vontade de dar meia volta e fugir. Felizmente, meu senso de justiça foi mais forte. Tive que usar toda minha capacidade intelectual para analisar, avaliar e decidir meu próximo passo em milésimos de segundo.
Resolvi enfrentar aquela pessoa estranha, aquela pessoa horrível que eu acabara de conhecer: eu mesma, a racista. Entrei no consultório e apresentei meu bebê para a consulta com o pediatra muito negro. Dr. Samuel Paiva Martins precisou de pouco tempo para me encantar. Nunca tinha visto tanto conhecimento, tanto amor e competência! Não tive nenhum medo de entregar meu amado filhinho de poucos dias àquele ser humano.
Esta decisão nunca poderia se basear na cor do outro. Quem é mãe sabe muito bem a preocupação que é entregar nosso pequeno “mundo” para uma cirurgia tão evasiva seja para qualquer médico for. Mas num mundo racista a cor, por inúmeras vezes, vai definir o julgamento de competência e aceitação do outro e isto é o fim para desumanização.
Que bom que aquela jovem, eu, foi capaz de lutar contra seus monstros inconscientes, intoleráveis e involuntários, porém nem todos se dão conta. É neste ponto que me identifico como vítima do racismo estrutural. Eu não fui criada para ser racista e nunca teria percebido que o era, se não fosse pela minha criação para respeitar o outro e fazer justiça.
Naquele momento de minha vida, vivi o quê hoje eu entendo por Racismo Estrutural. Este racismo é invisível, inexiste para a maioria das pessoas brancas e até mesmo para alguns negros. Passa desapercebido porque não é nominado, não é anunciado, não é discutido com o respeito e importância que merece e sofre com o disfarce da hipocrisia de uma sociedade egoísta, que se nega a assumir este fato e voluntariamente escolhe ignorar para preservar seu status quo e eliminar as chances de um concorrente indesejável e não "merecedor".
Nossas crianças brancas estão crescendo neste ambiente injusto sem a capacidade de entender esta nociva conjuntura social. Se tornam jovens sem a capacidade de fazerem autocrítica e são deixados a se levar pelo preconceito até as últimas consequências mais cruéis.
Hoje eu entendo, por causa da minha experiência, que o racismo estrutural é um fato inegável e precisamos mudar isso com educação familiar, escolar e políticas públicas de conscientização e inclusão. Não podemos mais ser negligentes e continuar vivendo num mundo de fantasia como se o mito da Democracia Racial fosse real e uma solução.
Não podemos mais nos fingir de mortos para esse assunto. Racismo Estrutural é grave e incontestável! Racismo no Brasil existe sim e está fortemente entranhado na nossa sociedade e instituições!
Precisamos reparar o erro e a segregação social que o abandono à própria sorte dos escravos criou entre nós.
O preconceito contra uma pessoa negra é apenas a ponta do problema e o que vemos abaixo da superfície é muita morte e violência contra essas pessoas e inclusive o pano de fundo de parte da criminalidade em toda sociedade. Devemos empenhar todos os esforços para desenvolver uma cultura de respeito, de confiança e dar oportunidades aos negros pobres para que essa diferença social seja reparada e minimizada.
Reparar não se trata de assistencialismo. Negros são tão competentes e podem ser mais que os brancos numa concorrência leal com oportunidades iguais. Acontece que faltam-lhes justiça social!!!! E é a justiça social que pode impedir crianças pobres enveredarem no crime. Se não lutarmos juntos por estas mudanças de paradigmas, seremos assassinos de cada uma dessas crianças e jovens que morrem sem oportunidade ou culpados por adultos que têm suas vidas trancadas numa penitenciária.
Se justiça for feita e reparada a desigualdade, no futuro poderemos afirmar que o crime não era uma opção para a maioria das crianças negras e pobres e, só assim, cada criminoso será direta e inteiramente responsável por seus atos.