Conto "A mulher que virava bicho"
Armados de enxada, foice, espingarda, facão, pedaços de madeira... uma multidão se dirigiu para a casa da viúva
Os mais antigos contam que em Conceição do Araguaia nas primeiras décadas do século XX existia na cidade uma viúva que morava sozinha com o filho. Não se sabe dizer ao certo como e quando o marido dela morreu. A casa da viúva estava sempre fechada, nunca recebia visitas e ela só saía na rua quando era para comprar alguma coisa. Nas poucas vezes que saía colocava um manto na cabeça que escondia parte do seu rosto, como se estivesse se escondendo das pessoas. Mas o manto na cabeça fazia com que as pessoas olhassem mais ainda para ela. Só era vista andando com o filho quando o menino estava muito doente e ela o levava para receber tratamento médico no Hospital Nossa Senhora do Rosário, bem próximo da igreja católica.
A criança também não estudava e nem saía para brincar com outras crianças. As vizinhas desistiram de tentar fazer amizade com a viúva. Sempre que batiam na porta dela levando um pedaço de bolo ou para pedir uma xícara de café ou açúcar emprestado, batiam e chamavam até cansar a mão, mas a viúva não abria.
Quando o filho da viúva completou 18 anos começou a circular na cidade uma conversa de que mãe e filho viviam como marido e mulher. Pois a viúva havia engravidado e sofrido um aborto espontâneo, segundo falou uma mulher que preparava remédios caseiros e a atendeu quando ela buscou ajuda, porque estava perdendo muito sangue. E implorou para que a mulher não comentasse o caso com ninguém. Até deu um dinheiro a mais para ver se a mulher guardava segredo. Mas não adiantou de nada. No outro dia a cidade inteira já sabia do aborto.
O único homem que a viúva tinha contato na cidade era com o próprio filho, portanto concluíram que ela havia engravidado do filho dela. As pessoas passaram a ofender a viúva nas vezes que a viam na rua. Quem não falava nada geralmente se benzia ao passar por ela. À noite, estranhos jogavam pedras na casa da mãe e filho, enquanto xingavam e mandavam eles irem embora da cidade. Cada vez menos os dois passaram a ser vistos circulando na cidade.
Numa certa noite uma dessas pessoas que iam constantemente na casa da viúva e do filho dela jogar pedras no telhado, na porta e nas janelas, já se preparava para arremessar uma banda de tijolo quando a porta da casa se abriu lentamente, e dentro saiu uma criatura estranha com os olhos brilhando no escuro, rosnando, caminhando bem lentamente na direção do intruso, pisando macio no chão, que àquela altura já tinha soltado a banda de tijolo no chão e se afastava caminhando de costas com passos leves, parecendo um astronauta caminhando na superfície da lua para não irritar o monstro que vinha ao encontro dele.
Naquela época não existia energia elétrica na cidade e sem a lua no céu, a noite estava sombria. De repente o homem virou-se e começou a correr e a criatura disparou atrás dele. Quando o homem viu que o monstro iria lhe pegar gritou desesperado por socorro, um grito misturado com choro e cansaço. Já estava pedindo perdão a Deus pelos seus pecados, na certeza de que iria morrer, quando apareceu um outro homem e a fera desistiu de persegui-lo e partiu pra cima do sujeito que não tinha nada a ver com a história.
O segundo homem não teve a mesma sorte do primeiro. No dia seguinte encontraram o pobre todo despedaçado pela rua. Pernas e braços foram deixados em locais diferentes. Seu rosto ficou desfigurado de tantas mordidas, parte dos seus órgãos espalhados pelo chão e as coxas e nádegas foram devoradas.
A cidade toda chegou conclusão que o monstro era na verdade a viúva, já que o único sobrevivente relatou que a fera havia saído de dentro da casa da mulher. Um grupo de fanáticos religiosos espalhou que a mãe se transformava em capelobo todas as noites. Segundo os fanáticos, a mãe havia sido amaldiçoada por ter se tornado esposa do próprio filho e engravidado dele. Agora virava bicho toda noite.
Após a primeira morte outros assassinatos aconteceram com o mesmo requinte de crueldade. A população ficou assombrada. Seis horas da tarde todos já chamavam as crianças, entravam pra dentro de casa, trancavam as portas e só saiam quando o dia amanhecia.
Quando a criatura fez a nona vítima, um bêbado desavisado que vinha do boteco às duas horas da manhã e teve o azar de bater de frente com a fera, a população se rebelou. Armados de enxada, foice, espingarda, facão, pedaços de madeira... uma multidão se dirigiu para a casa da viúva. Quando a população chegou na casa e arrombou a porta, mãe e filho já tinham fugido às pressas pela porta dos fundos. Ao revistarem a residência à procura dos dois, encontraram um quarto com uma porta de madeira bem grossa e trancada com vários cadeados pelo lado de fora. A custa de muito esforço conseguiram arrebentar os cadeado e arrombar a porta. Para a surpresa de todos, dentro do quarto havia uma onça-preta enorme que só não matou ninguém porque um dos visitantes atirou com uma espingarda quando o animal atacou.
As nove pessoas não foram mortas pelo capelobo como todos pensavam. A viúva e o filho criaram a onça desde pequenininha e quando passaram a ser hostilizados pela população começaram a soltar o animal a noite para se alimentar de algum transeunte vagando pela madrugada. Foi a forma que encontrou de se vingarem das pessoas que os xingavam e iam perturba-los à noite em sua casa. Depois daquele dia ninguém teve mais notícias da viúva e do filho dela. A cidade voltou a mansidão de antes.
* Uágno Lima nasceu numa pequena cidade no interior do Pará chamada Conceição do Araguaia. Na infância trabalhou vendendo picolé, peixe, capinando quintal e vigiando carros no estacionamento de uma praia, enquanto as pessoas se divertiam. Na adolescência foi garçom, servente de pedreiro e pintor de parede. Hoje, trabalha numa emissora de rádio. Já teve tantas profissões, mas é poeta. E essa é a única coisa que realmente gosta na vida. Tudo que faz, além disso, é por pura obrigação.