Porque as Pedras Existem

Capítulo I: O Deserto Sem Fim

24 de agosto de 2021
atualizada em 20 de setembro de 2021
Capa do livro Porque as Pedras Existem
Capa do livro Porque as Pedras Existem

As cidades, como os sonhos, são construídas de desejos e medos, muito embora o fio de seu discurso seja secreto, suas regras absurdas, as perspectivas enganosas e cada coisa esconda outra.
Italo Calvino

Há milhares e milhares de anos existia um oásis no centro de um deserto muito grande, escondido do mundo e o mundo escondido dele. Os obstinados aventureiros que ousaram atravessar aquele deserto viveram a última aventura de suas vidas. Padeceram e seus ossos se misturaram a areia do deserto. Viajaram incessantemente durante meses sem chegar a lugar nenhum e no meio do nada pereceram sedentos de água, comida, sombra e lucidez. Pois antes de matar o deserto enlouquecia. Menos mal. Melhor morrer louco que esmagado pelo peso da realidade.

Aquele lugar aterrorizante era conhecido como o deserto sem fim e ficava localizado no lugar mais distante do planeta. Só chegavam lá fugitivos que não tinham mais onde se esconder e desbravadores querendo escrever seus nomes na história.

Ninguém sabia que no centro daquele inferno de areia existia um paraíso: Um fantástico oásis povoado com cem pessoas. Aquelas cem pessoas sobreviviam ali graças a um enorme lago com abundância de peixes. Com a água do lago irrigavam as plantações de milho, arroz e feijão. A vegetação nativa do Oasis ofertava bananeiras, coqueiros, mangueiras. Ninguém na comunidade de cem pessoas sabia ao certo como os primeiros habitantes daquele lugar conseguiram chegarem vivos ali. Os mais religiosos diziam que haviam chegado do céu. Viviam tão isolados que pensavam que só existiam eles em todo planeta terra e que o resto do mundo era um completo deserto. Por isso nunca se arriscavam sair do oásis.

No oásis existiam regras rígidas que deviam ser seguidas por todos. Se não fosse as regras que seguiam talvez as pessoas daquela comunidade já nem existissem mais. Ninguém sabia quem havia criado as regras. Mas as seguiam cegamente. Quem transgredisse as leis era expulso do oásis e ser expulso do oásis era ser expulso da vida para cair no abismo da morte. 

Tudo que o oásis produzia era suficiente para garantir o sustento de cem pessoas e nenhum ser humano a mais. Caso excedesse o número de 100 integrantes aconteceria um desequilíbrio irreversível, o caos poderia se estabelecer e todos da comunidade acabariam morrendo.

Para manter a quantidade exata de cem pessoas, sempre que nascia uma criança o mais velho da comunidade era obrigado a deixar o oásis e entrar no deserto sem fim para nunca mais ser visto. Era a lei. Por causa dessa lei que a população nunca passava de cem pessoas. Fosse homem ou mulher, nasceu um bebê, o mais idoso do grupo tinha que partir. Por isso toda vez que uma mulher engravidava o mais velho da comunidade ficava apreensivo. Em nove meses teria a sua sentença de morte executada. Claro que aconteceu casos em que o mais velho envenenou a mulher para que ela perdesse criança que carregava no ventre e ele não tivesse que ir embora para morrer. Acabou morrendo a criança e a mãe envenenados e o criminoso foi descoberto e condenado à morte. 

Alguns quando tinham que abandonar o oásis sacrificam-se com o orgulho de um herói que doa a própria vida para salvar outras cem. Outros choravam igual criancinhas e suplicavam para ficar, num ato desesperado de humilhação que causava dó, ódio e vergonha. Mesmo assim a lei era cumprida. Não adiantava implorar. Melhor morrer um que colocar a vida de cem em risco. 

Os davam mais trabalho na hora de ir embora eram aqueles que brigavam para ficar, que não aceitavam de forma alguma ter que ir embora para morrer no deserto só porque uma criança nasceu. Uma criança que não era seu filho e tão pouco seu parente. Os que resistiam eram condenados à pena de morte. Morte por envenenamento ou forca. O desafortunado tinha o direito de escolher depois de ser imobilizado e amarrado à uma árvore. Os menos exaltados, que conseguiam se acalmar depois de amarrados na árvore, preferiam morrer envenenados com uma espécie de erva que só existia naquele lugar e em mais nenhum outro lugar do mundo. A erva adormecia a pessoa lentamente, causando uma sensação de bem-estar e levando para um estado prazeroso de inconsciência. A pessoa morria com a expressão de quem acabou de passar por uma sessão relaxante de massagem nas costas ou teve um orgasmo múltiplo. Já os mais exaltados eram enforcados em um galho da própria árvore, que ficaram amarrados.

O escolhido para entrar no deserto sem fim tinha o direito levar água e alimentos. O quanto quisesse e conseguisse carregar. Um dia antes da sua partida a comunidade fazia uma festa em sua homenagem. Bebiam, comiam, dançavam e relembravam os grandes feitos do escolhido. Às vezes até mentiam ou supervalorizaram os feitos do escolhido para fazê-lo sentir-se bem. Pouco antes de entrar no deserto todas as pessoas do oásis se reuniam para homenagear e chorar a saída dele. Usavam a palavra "escolhido" para tentar convencer a pessoa de que ela foi selecionada para realizar um grande feito em prol do seu povo, e não que estava sendo expulsa porque não havia mais lugar para ela ali. Iludiam a pessoa para que ela conseguisse encarar a realidade com o menor sofrimento possível. O correto era usar "excluído" no lugar de "escolhido".

O choro se misturava aos aplausos, assovios e gritos de agradecimento ao escolhido. Ele abraçava os parentes, os amigos, beijava a testa e abençoava a criança que ficaria em seu lugar. A criança que ocupava o lugar do escolhido era batizada com o nome daquele que morreu para que ela vivesse. Isso se aceitasse entrar no deserto por bem. Se resistisse e fosse condenado à morte não tinha nenhuma homenagem e ninguém mais citava o nome da pessoa. A mãe e o pai da criança tinham a responsabilidade de contar para o filho ou a filha a história de quem ela ocupou o lugar. Ela crescia sabendo que recebeu aquele nome porque alguém doou a vida para que ela sobrevivesse. Portanto devia honrar o seu nome e passar adiante a história daquele ou daquela que morreu por ela.

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imagem de
Uágno Lima
Radialista e poeta
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