Livro: Porque as Pedras Existem

Capítulo II: A Pedra mais velha do mundo

31 de agosto de 2021
atualizada em 20 de setembro de 2021
Capa do livro Porque as Pedras Existem
Capa do livro Porque as Pedras Existem

Um monte de pedras deixa de ser um monte de pedras

no momento em que um único homem o contempla,

nascendo dentro dele a imagem de uma catedral.

Antoine Saint-Exupéry

Dias antes de cada parto as grávidas entravam no lago, mergulhavam e sem olhar apanhavam a primeira pedra que tocavam no fundo. Aquela pedra seria entregue ao filho nos primeiros anos de vida e o acompanharia até o momento da morte. O dono da pedra deveria, durante os anos em que vivesse, encontrar naquele aparente objeto sem nenhum valor, um significado profundo para enriquecer a sua própria existência.

O poeta do Oasis compunha versos primorosos inspirados em sua pedra. Transformou uma simples pedra numa fonte inesgotável de inspiração. Havia também um contador de histórias que desenvolveu uma relação tão empática com sua pedra que ela lhe relatava tudo que viveu ao longo dos seus milhões de anos de existência. Mas só ele conseguia ouvir a voz da pedra. Para as outras pessoas aquilo era apenas uma pedra comum. A pedra do contador de histórias dizia que chegou à terra há 66 milhões de anos. Depois de viajar por milhões de anos-luz pelo espaço. Antes de se transformar naquela pedrinha pequena havia sido uma pedra gigante com 15 quilômetros de diâmetro. Para ser mais claro, antes de ser pedrinha fora um asteroide chamado Chicxulub. Sua chegada no planeta Terra causou uma explosão e uma nuvem de poeira tão grandes que extinguiu os dinossauros. No choque com a terra o asteroide Chicxulub se espatifou todo, se transformando em poeira e cinzas. Sobrou apenas uma pequena parte: aquela pedrinha que agora pertencia ao contador de histórias.

Se gabava de ser a pedra mais velha do mundo. Pois antes do mundo existir já viaja pelo o universo em forma de asteroide. Dizia ter conhecido milhares de planetas, milhões de estrelas e centenas de galáxias. A noite enquanto contava histórias para os outros moradores do oásis, sentados ao redor de uma fogueira, o contador apontava para o céu com o dedo indicador e dizia: “a minha pedra veio das estrelas”. Era uma forma poética dele dizer que a sua pedra era mais especial que as pedras de todos ali.

Muitos e muitos anos depois da morte do contador de histórias, o profeta Davi usou aquela mesma pedra para derrubar o gigante Golias. Depois de Golias e Davi a pedrinha continuou perambulando pelo tempo e pelo mundo. Até que um belo dia, um poeta chamado Carlos Drummond de Andrade se deparou com ela e do encontro entre os dois nasceu um emblemático poema chamado: No Meio do Caminho:

No meio do caminho tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

Tinha uma pedra

No meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

A história do mundo podia ser contada pela história daquela pedra que matou monstros, derrubou gigantes e inspirou poetas.

No Oasis também residia um sujeito que de tão apegado a sua pedra nunca quis casar com nenhuma mulher. Era apaixonado por sua própria pedra. E ainda por cima chamava a pedra de meu amorzinho, de meu bem, de querida. Fazia declarações de amor para a pedra na frente de qualquer um. E até discutia a relação com a pedra.

- Um dia ele vai acabar engravidando essa pedra - diziam os engraçadinhos do oásis.

Um caçador orgulhava-se de ter acertado mais de duzentas aves com sua pedra. Uma mulher possuía uma pedra transparente, parecida com um cristal. Meio arredonda e através dessa pedra conseguia ver o futuro. A melhor cozinheira do oásis tinha um tempero infalível: colocava a sua pedra para cozinhar dentro das refeições e depois da comida pronta retirava a pedra. Só uma vez pensou que havia tirado a pedra da panela de sopa, mas se enganou. E alguém quase engoliu a pedra enquanto tomava sopa. Mas ela chegou a tempo de dar um tapão nas costas da pessoa que estava entalada e fazer ela cuspir a pedra no chão. Se tivesse engolido teria morrido engasgado ou tentando cagar a pedra. Nada era tão saboroso como os pratos preparados por aquela mulher. A comida era tão boa que dava vontade de comer até a pedra. Alguns mortos de fome tentaram realmente comer a pedra e terminaram por ficar sem os pedaços de alguns dentes. Pois a pedra absolvia o cheiro da comida que estava sendo preparada e ficava mais cheirosa que a própria comida. Era tentador querer mordê-la.

Certa vez uma mulher grávida entrou no lago para escolher a pedra do filho que estava para nascer, e tocou numa pedra enorme com mais de um metro de diâmetro. Por ser muito pesada e grande, a mãe não conseguiu levar a pedra para guardar em casa e entregá-la ao filho quando ele nascesse. Apenas marcou com uma vara de bambu o local onde a pedra estava.

Passados alguns dias o menino nasceu prematuro, raquítico, com saúde fragilizada. Era pouco maior que uma mão adulta quando veio ao mundo. As pessoas do Oasis duvidavam que aquela criança sobrevivesse. Diziam que ele não durava um mês. Inclusive a pessoa que deveria deixar o oásis depois do nascimento do menino, pediu para ficar mais uns dias antes de partir. Pois caso o menino morresse logo o seu direito de permanecer estava garantido. Diante do estado de saúde debilitado da criança, deixaram o escolhido ficar por mais duas semanas.

Mas os milagres adoram contrariar a realidade. Crispim como a mãe o batizou, sobreviveu surpreendendo a todos e para a tristeza do escolhido que foi obrigado a deixar o oásis. O menino cresceu e tornou-se um moleque magricela com cara assustada, olhos arregalados e muito sorridente. Era desajeitado e muito bem humorado, desinibido como um bêbado. Era a diversão das outras crianças. Todos adoravam brincar ou ficar perto dele. Fazia piadas com seu próprio porte físico e a sua aparência.

Enquanto as crianças ficavam com vergonha na hora de tirar a roupa para banhar no lago, Crispim não tinha o menor constrangimento de mostrar seus ossos expostos no seu porte físico esquelético coberto apenas por pele. Na hora que tirava a roupa fazia poses sensuais como se tivesse mostrando seus “músculos”. O que matava as outras crianças e até os adultos de rir e fazia com que as outras pessoas tirassem a roupa para banhar também. Era daquele tipo raro de ser humano que faz as pessoas se sentirem melhor apenas por ser aquilo que ele realmente é. Não fazia nada para impressionar ou chamar a atenção de ninguém. Ele era aquilo mesmo. A mãe e o pai tinha muito orgulho dele. Mal amanhecia o dia já tinha um monte de crianças na frente da cabana da família do Crispim chamando ele para brincar. Outras crianças iam a noite pedir para os pais do Crispim deixar ele dormir na casa deles.

Desde pequeno a mãe o levava ao lago para ele visitar sua enorme pedra. Se nem um adulto conseguia tirar a pedra do lago, imagine o magricela do crispim com seus pouco mais de 40 quilos de muitos ossos e pele e pouca carne. A pedra não poderia ser tirada do lago por outra pessoa. Só ele poderia tirar, ou mãe poderia ter tirado antes dele nascer. Como ela não deu conta, agora esta missão era apenas do garoto.

Até para tocar na pedra era difícil, precisava mergulhar fundo. Nem é preciso dizer que Crispim tentou várias e várias vezes tirar a pedra do fundo do lago, em vão é claro. Pois a pedra pesava muito, mais muito mais que ele. Mergulhava todos os dias pela manhã, meio dia, à tarde e às vezes quando acordava a noite saía na ponta dos pés para seus pais não escutar, e da cabana onde morava ia para o lago tentar tirar a pedra. Quantas vezes o pai foi buscar ele mergulhando no lago de madrugada. Sozinho, tentando tirar a pedra. Ou a mãe foi chamar ele para almoçar, pois já eram duas horas da tarde e ele ainda estava sem comer. Saía da água tremendo de frio. Mas já saía perguntando para a mãe se poderia voltar para o lago depois que almoçasse.

De tanto mergulhar para ver a sua pedra desenvolveu a capacidade de ficar vários minutos embaixo d’água sem precisar respirar. Tornou-se tão hábil embaixo d’água que quando queria pescar caia na água e pegava o peixe que quisesse com as próprias mãos. Na hora de brincar com outras crianças para ver quem ficava mais tempo mergulhado, tinham que tirar ele da água, pois demorava tanto para sair da água que pensavam até que já tinha morrido. Crispim ficava até dez impressionantes minutos submerso e ainda saía da água sorrindo e dizendo: “ganhei de novo, hein. Anota mais uma pra mim”. O lago era enorme, mas Crispim conseguia atravessá-lo mergulhando. Entrava de um lado do lago e saía do outro. E brincava:

- Se eu fosse um pouquinho mais magro atravessava esse lago correndo.

Certo dia Crispim teve a ideia de amarrar uma corda na sua pedra para tentar tirá-la do fundo do lago. A pedra era tão pesada que parecia de chumbo. Várias vezes durante o dia Crispim ia lá no lago tentar puxar a pedra pela corda. Primeiro suas mãos criaram calos de tanto segurar a corda e puxar durantes horas. Depois as mãos começaram a sagrar. Mesmo sangrando e doendo não parou um só dia de tentar. Aprendeu a se acostumar tão rápido com a dor que a dor já não lhe incomodava mais. Ainda que o pai e mãe brigassem para que ele deixasse primeiro as feridas das mãos sarar para depois continuar puxando a pedra pela corda, não adiantava. Crispim esperava os pais se distraírem um pouquinho que fosse e corria para o lago. Dali algumas horas voltava com as mãos sangrando novamente, suado e a roupa toda. Sujava a roupa porque fazia tanta força puxando a corda que até deitava de costas no chão. Parecia uma disputa de cabo de guerra entre ele e a pedra. Por enquanto a pedra estava vencendo a disputa. Sorrindo dizia para a mãe: “Acho que a pedra mexeu um pouquinho, mãe. Ela mexeu. Eu senti.” A mãe lhe dava bronca enquanto fazia curativos nas mãos dele depois de tê-lo mandado banhar e trocar de roupa:

- Para de mexer as mãos, Crispim, eu estou fazendo curativo. E não volte mais no lago enquanto essas feridas não sarar, hein. Esteja avisado.

As palavras da mãe entravam num ouvido e saíam pelo o outro.

De dois em dois dias a corda quebrava de tanto ele fazer força. Aí le amarrava outra corta e continuava a saga. De tanto as mãos ferir e sarar, sarar e ferir nasceu uma pele tão grossa nas mãos do Crispim, que nem faca perfurava as palmas das mãos dele. Era um couro mais grosso que couro de jacaré e mais resistente que casco de jabuti. Depois que criou aquele couro grosso as mãos suas mãos nunca mais feriram. Assim ele pode ficar mais tempo tentando puxar a pedra do lago.

O esforço diário para retirar a pedra do lago fez o corpo franzino do Crispim ganhar músculos mês após mês, e a sua força cresceu mais que seus músculos. Aos 14 anos já era mais forte que todos os homens do oásis. Justamente aos 14 ele conseguiu finalmente tirar a sua pedra do lago. Todos da comunidade assistiram aquele momento épico de perto. Uma criança correu na casa dos pais do Crispim avisar:

- Correm que ele tá tirando a pedra do lago! Vem ver, vem!

A torcida comemorou aos gritos e aplausos e em seguida pegou Crispim nos braços, jogou para cima e saíram passeando com ele pelo oásis no momento que tirou a pedra do lago.

Naquele dia Crispim não voltou para casa. Dormiu na beira do lago. Fez tanta força que não estava em condições de arrastar a pedra do lago até sua casa. Então decidiu dormir ao lado da pedra. Para não ter que deixa-la sozinha. Dormiu abraçado com a pedra. Só quando amanheceu, com as forças recuperadas, iniciou outra batalha: arrastar a pedra até a sua casa. Demorou mais de uma semana para realizar o feito. A cada dia arrastava a pedra por alguns metros até finalmente conseguir chegar com ela na cabana onde morava com os pais.

Passou vários dias sem sair de casa. Se recuperando do esforço que fez. Também porque prometeu para si mesmo que onde fosse levaria a pedra consigo. Essa era a tradição. Todos no oásis andavam com suas pedras. Uns com as pedras nos bolsos, outros com as pedras penduradas no pescoço em forma pingente de cordão. Tinha também quem carregasse sua pedra em uma pulseira, ou até mesmo na mão. Só que as pedras dos outros moradores eram pedras pequenas, fáceis de carregar. Já Crispim estava fadado a carregar uma rocha enorme pelo o resto da vida. Mesmo assim ele estava disposto a seguir a tradição e para onde fosse levaria pedra. Custe o que custar.

No começo Crispim saía de casa apenas uma vez por dia. Quase sempre para se distrair batendo um papo com os amigos perto da sua casa mesmo. Era o que sua força permitia. Ainda não conseguia levar a pedra para longe e voltar sem ficar completamente esgotado e com todos os músculos do corpo doendo. Ás vezes dava até febre de tanto fazer força. Mas aos poucos conseguiu levar a pedra cada vez mais longe. Dentro de poucos meses já ia e voltava no lago carregando a pedra. Que bom. Pois uma das coisas que mais sentia falta de fazer era banhar e pescar mergulhando no lago.

Toda vez que Crispim pulava na água para pescar quem estava por perto ficava atento prestando atenção. Contando quanto tempo ele ia demorar embaixo da água e que peixe ele iria trazer nas mãos quando emergisse. Sempre era um peixe grande que precisava segurar com as duas mãos.

Aos poucos a pedra foi parecendo cada vez mais leve e Crispim aumentou as suas saídas de casa para distâncias cada vez mais longas. Mas a pedra não estava ficando mais leve. Era a força de Crispim que continuava aumentando. A força dele aumentou tanto que passou carregar a sua pedra com apenas uma das mãos como se carregasse uma bandeja de alumínio com um copo vazio em cima. Ou equilibrava a pedra na sua cabeça como se carregasse uma trouxa de roupas para lavar na beira do rio. Seu equilíbrio e força na hora de carregar a pedra era tanto que apostava até corrida correndo com a pedra na cabeça, sem deixar ela cair, e ainda ganhava a corrida. Também jogava a sua pedra para cima e aparava ela com apenas uma das mãos. Sua força era tamanha que conseguia arrancar uma árvore pela raiz sem danificá-la.

Um belo dia quiser ter uma mangueira no fundo da cabana onde morava com os pais. Mas não queria plantar uma muda de mangueira que demoraria anos para crescer, dar sombra e frutos. Então Decidiu arrancar uma mangueira adulta que tinha na beira do lago e plantar no seu quintal. Não foi fácil. Porque enquanto arrastava a mangueira pela raiz e levava a pedra na outra mão, uma mosca ficou tentando pousar no seu rosto e ele sem poder fazer nada, porque estava com as duas mãos ocupadas. Mas conseguiu.

Seus feitos eram sempre acompanhados de perto pelas crianças do oásis que viam nele um super-herói e sonhavam em crescer e ser igual o Crispim. Ele respondia a essa admiração dos pequenos com muitos sorrisos e conselhos. Aqui acolá uma criança pedia para que ele a jogasse pra cima e aparasse, igual fazia com a pedra. Jogava a criança tão alto que o menino parecia voar. O aparava com a mesma facilidade e maciez com que aparava sua pedra.

Quando estava de mau humor Crispim nem saía de casa. Não gostava de tratar ninguém mal e nem de fingir simpatia quando não queria ser simpático, só para agradar os outros. Mesmo sem sair de casa toda hora aparecia alguém para visita-lo. Às vezes era um pai ou uma mãe levando um filho para vê-lo. Tinham crianças que faziam birra e não pararam de chorar enquanto os pais não os levasse para ver o Crispim. Aí a mãe do Crispim tinha que dizer que ele estava dormindo e que podiam voltar uma outra hora.

Aos 80 anos de idade Crispim ainda ostentava o posto de homem mais forte da comunidade. Aos 80 anos não era só o homem mais forte daquele lugar. Era também o mais velho, o mais sábio, o mais divertido, o mais querido. Por ser o homem mais velho, logo que nasceu uma criança teve que ir embora, entrar no deserto sem fim e deixar o seu lugar para outro ocupar, como mandava a tradição. Seus filhos já eram adultos e seus netos ainda crianças. A esposa já havia falecido dois anos antes de problemas cardíacos. Quando ela faleceu tinha 74 anos.

Tantas gerações haviam passado no oásis, mas nenhum homem naquele lugar foi tão amado e admirado por seu povo como Crispim. Por ele, alguns até cogitaram a possibilidade de pela primeira vez mudar a lei, para que Crispim não tivesse que deixar o oásis. Mas ele próprio fez questão que a lei fosse cumprida, como foi para todos antes dele. Seu povo o admirava justamente porque apesar de ser forte e admirado, nunca se colocou acima de ninguém. E não era agora no final da sua vida que iria fraquejar e destruir história de respeito e honra que construiu. Sentia-se realizado com a vida que levou. Sua missão estava cumprida. Viveu com honra e morreria com honra.

Nunca se viu tanta comoção como na hora de Crispim partir. Um choro coletivo se estendeu pelo o oásis. Todos queriam abraça-lo antes dele entrar no deserto sem fim para morrer. Ou pelo menos tocá-lo, guardar alguma lembrança dele. Nem que fosse um pedaço pequeno da sua roupa. As crianças principalmente. Ele abraçou todos os cem que ficaram. Inclusive o menino recém-nascido que ocuparia seu lugar na comunidade.

As pessoas ficaram olhando atentos, acenando, gritando adeus até ele sumir no meio do oceano de areia. Alguns nem conseguiram olhar, de tanta emoção que sentiram. Um dos netos de Crispim, o mais novo, de apenas seis anos de idade, ainda tentou se soltar do pai para ir junto com o avô. Mas foi contido ao custo de muito choro e gritos de “me solta que eu vou buscar o vovô, Me solta que eu vou buscar o vovô”.

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imagem de
Uágno Lima
Radialista e poeta
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