Livro: Porque as Pedras Existem
Capítulo III: Cuidado Com os Homens Bons
Todos estamos deitados na sarjeta,
só que alguns estão olhando para as estrelas.
Oscar Wilde
Era um domingo úmido. O dia acabara de amanhecer. O pai estava com o filho de dez anos de idade na floresta ensinando o menino a caçar. Os cervos costumam sair cedo pela floresta em busca de alimento. É uma das melhores horas para caçá-los. Por isso pai e filho saíram de casa ainda escuro. O sol estava raiando quando entraram na mata. O garoto bocejava sempre que o pai não estava olhando. Não queria que o pai percebesse que estava ali contra a sua vontade. Queria mesmo era continuar em casa dormindo. Aproveitar o tempo frio para ficar deitado na cama curtindo preguiça. Levantar só na hora de tomar o café da manhã e depois voltar deitar de novo para ficar brincando na cama. Já que em dias frios as outras crianças da sua idade dificilmente saiam de casa para brincar.
O garoto amava muito o pai e por isso não queria contrariá-lo. O pai fazia de tudo para que o filho crescesse um homem forte e tivesse uma vida bem melhor que a vida que ele tinha. E o menino reconhecia isso. Via no dia a dia e o esforço do pai para que ele tivesse conforto, alimentação de qualidade, brinquedos, e mesmo sendo um homem rude, era carinhoso com o garoto. Um carinho que ele só demonstrava ter pelos pais, a sua única irmã e seu filho. Já as outras pessoas conheciam apenas o seu lado frio, silencioso e bruto. Com pessoas fora do seu ciclo familiar era um ogro. Só conversava o necessário. Dizia que palavras são como dinheiro: Só devem ser gastas quando necessário.
As outras crianças com pais nas mesmas condições financeiras que ele não davam aos filhos o conforto que dava ao seu menino. Moravam apenas os dois. Pagava uma senhora para fazer as tarefas domésticas. A mãe do garoto o pai conheceu num prostíbulo. Era seu cliente fiel. A visitou quase todas as noites durante anos. Numa dessas noites, sentados na cama suados, ela segurando um copo de whisky numa mão e um cigarro na outra, revelou que estava grávida e que o filho era dele.
- Como sabe que o filho é meu?
- Uma mulher sabe dessas coisas.
Ele não bebia e não fumava. O seu único vício era aquela mulher. No início ficou na dúvida se realmente era o pai da criança. Mas quis pagar para ver. Pois sonhava ser pai. Queria ter um filho que realizasse os sonhos que ele não conseguiu realizar. Quando o menino nasceu, antes mesmo de olhar no rosto da criança, conferiu o antebraço direito do bebê. Suspirou aliviado quando viu que o menino carregava a marca de nascença da sua família: uma mancha no antebraço direito. Uma mancha como se fosse um mapa de uma terra desconhecida. A sua irmã, o seu pai, os seus avós tinham aquela mesma mancha... todos da sua linhagem paterna carregavam aquele sinal no braço.
A mãe do garoto depois do parto quis continuar na profissão de mulher da vida. Mudou-se para outra cidade. Na verdade tomou rumo desconhecido. Deixou o menino aos cuidados do pai e nunca mais deu notícias.
Na época que a mulher engravidou, a levou para a casa dos pais dele, que moravam numa propriedade rural com a sua irmã caçula. Inventou para os pais que a mulher estava prometida para ser freira, que os pais dela não aceitavam que casasse, imagine engravidar. Por isso o pai a expulsou de casa aos ponta pés, quando descobriu que a filha estava grávida. Ela não tinha para onde ir. Ficar na casa dele não teria como, porque a sua atividade impediria que desse para a moça a atenção e os cuidados que uma grávida precisa.
Os pais dele a acolheram prontamente, como se acolhessem uma filha. Entusiasmado com a ideia de ter o primeiro neto. Só a irmã dele sabia que na verdade a moça era garota de programa, que ele era apenas mais um dos seus clientes e que se ele não tivesse lhe prometido uma grande quantia de moedas de ouro ela teria feito outro aborto, como já havia feito inúmeras vezes. Ou seja, assim como ela pagava para fazer sexo com ela, também estava pagando para que ela tivesse aquele filho.
Depois que a criança nasceu ela fugiu no meio da madrugada da casa dos avós do bebê, deixando o menino com algumas semanas de vida para trás. Foi até a casa do pai do menino buscar as moedas de ouro que haviam combinado dele pagar para que ela tivesse o filho. O acordo foi cumprido. Ela recebeu uma enorme quantia em moedas de ouro. Uma pequena fortuna que se ela soubesse administrar nunca mais ficaria pobre. Recebeu as moedas e prometeu que aquela era a última vez que ele veria a cara dela. Pegaria as moedas de ouro e mudaria para bem longe. Lá seria dona do seu próprio prostíbulo e nunca mais precisaria ser humilhada trabalhando para os outros. Ele disse que se ela não cumprisse a sua parte no acordo e aparecesse por aquelas bandas novamente, a mataria com suas próprias mãos e jogaria seu corpo no rio para os peixes comerem.
O pai do menino era Ferreiro. Dedicava-se quase que exclusivamente ao ofício de forjar armas. Atividade mais lucrativa para um ferreiro na época. Já que as guerras eram constantes. No tempo que levou o filho ainda bebê para sua casa, a irmã mais nova do Ferreiro era solteira e ajudou a cuidar da criança enquanto ele trabalhava. Quando sua irmã casou, o menino já estava com 7 anos. Só a irmã sabia realmente quem era a mãe do garoto. Para os outros, inclusive para o filho, contava que a mãe da criança fugiu com um amante e o deixou a mercê. Queria que o filho e a comunidade a odiasse, para no caso dela descumprir o acordo que fizeram e voltar, as pessoas e principalmente o menino ficariam do lado dele e ela seria enxotada ou apedrejada até a morte pelas pessoas da cidade. O Ferreiro não confiava nas palavras de quem tinham vícios. O vício faz o rico ficar pobre e homens bons cometer atrocidades.
Todos na comunidade o admirava por ter assumido a responsabilidade de cuidar do filho depois que a mãe da criança fugiu com um amante. A noite antes de dormir o Ferreiro ajoelhava e rezava para mãe do menino nunca mais aparecer. Se voltasse poderia destruir a boa reputação que havia construído as custas de uma grande mentira. Não falou a verdade porque as pessoas o discriminariam e discriminariam a criança se soubessem que ele teve um filho com uma prostituta. Estava se protegendo e protegendo o garoto.
Ensinava tudo que sabia ao menino. Por isso estava ensinando o garoto a caçar. Se um dia, por ventura, se perdesse ou precisasse se esconder na floresta e caçar para garantir a sua sobrevivência, saberia se virar na selva: onde encontrar água, como conseguir alimento e se guiar em segurança para fora dali. Queria que o filho soubesse se proteger. Pois não teria para sempre o pai lhe protegendo. Temia que acontecesse alguma coisa com ele e o menino ficasse aos cuidados de sua irmã, que era uma boa mulher. Mas não sabia como o cunhado trataria seu filho. Se dava bem com o marido da irmã. Mas desde o dia que chegou para vê-la e se deparou com o cunhado bêbado a espancando, perdeu o respeito e a confiança nele. E pior, após ter revidado a agressão que a irmã recebeu, talvez o cunhado quisesse se vingar no seu filho, já que não tinha coragem de encara-lo.
Depois da briga com o cunhado o Ferreiro levou a irmã e os dois filhos dela para a sua casa. Mas precisou apenas de uma semana para ela se jogar novamente braços do marido. Bastou o companheiro ajoelhar-se aos pés dela e prometer chorando que nunca mais faria aquilo, que estava arrependido, que não foi isso que seus pais lhes ensinaram, que estava envergonhado, que ela era a mulher da vida dele, que não conseguia viver sem ela e sem os filhos. Todas as promessas que um bom cafajeste faria para reconquistar a confiança de uma mulher que ele havia maltratado. Completou as suas súplicas de perdão e promessas de arrependimento com um bom e velho buquê de flores. As flores são mais úteis aos cafajestes e aos defuntos que aos românticos.
O Ferreiro ainda passou um tempo intrigado com a irmã depois dela ter se reconciliado com o marido. Mas a pedido do filho voltou a falar com ela. A recebia todas as tardes em sua casa. Ela lhes visitava acompanhada dos dois filhos pequenos que adoravam brincar com o primo. O Ferreiro repetia sempre para a irmã que no dia que soubesse que o marido havia triscado pelo menos um dedo nela, não pensaria duas vezes antes de cortar a garganta dele e jogar a cabeça para os corvos devorar. Às vezes na calada da noite ou mesmo durante o dia ficava rondando à casa da irmã sorrateiramente para ver se escutava algum barulho indicando que o marido estava agredindo-a. Também pedia para os vizinhos ficarem de olho e avisá-lo se ouvissem algo suspeito. Onde o Ferreiro chegava o cunhado saía às pressas de cabeça baixa. Tinha mais medo que vergonha.
O cunhado não era um homem ruim. Era trabalhador, honesto e tímido. Criado numa família muito religiosa. Vivia da casa para o trabalho e para a igreja. A diversão se resumia a passeios pela cidade com a família, nos finais de semana quando saiam para comprar alimentos. Ou na casa de famílias também da igreja que frequentava, para almoçar ou jantar. Fazia as vontades da esposa e tinha muito orgulho dos dois filhos. Mas um belo dia alguém lhe ofereceu um gole de whisky enquanto trabalhava. Os colegas de trabalho gritaram: bebe! Bebe! Bebe! Todos queriam vê-lo beber, pois era muito correto. Além de não beber, não fumar, não olhava nem para uma mulher bonita quando passava por ele. Só tinha olhos para a esposa. E era zombado por isso. Por outros homens casados que bastavam ver uma mulher que já começavam assovia-la. Cedeu a euforia e pegou a garrafa de whisky e deu um gole. Bastou apenas o primeiro gole para não parar mais. Naquele dia já chegou em casa bêbado. Carregado pelos seus colegas de trabalho. Que apenas bateram na porta e saíram correndo, o deixando deitado no chão. A esposa o arrastou para dentro de casa, lhe deu banho, o colocou na cama. No outro dia bem antes dela acordar, ele levantou da cama envergonhado e foi para uma taberna beber. Queria beber para não pensar no que havia feito e no que estava acontecendo e para sentir novamente aquela sensação de desprendimento que a bebida lhe proporcionava. Não existia mais timidez depois de alguns goles de whisky.
Desde que começou a beber mostrou-se agressivo. Passou a chegar todas as noites bêbado em casa. Quando não chegava sozinho alguém o trazia ou vinha avisar a esposa que ele estava caído embriagado dormindo no meio da rua. Começou revidando verbalmente as reclamações que a esposa fazia quando ele chegava embriago. Um dia a empurrou na frente dos filhos. Uma das crianças gritou para ele parar e a outra deu um tapa na perna direita do pai para afastá-lo da mãe. Ele deu um soco no rosto da criança que o menino caiu apagado. A esposa indignada partiu para defender o filho e então ele começou as agressões contra ela. O Ferreiro estava batendo na porta ao lado do filho quando escutou os gritos. Derrubou a porta no quarto chute. Ao entrar na casa viu o cunhado em cima da sua irmã dando socos nela. Tirou-o de cima da mulher e o arremessou no chão com tanta brutalidade que o cunhado já caiu desmaiado. Mesmo assim o Ferreiro não parou de socar a cara dele. Por sorte os vizinhos ouviram os gritos e foram correndo ver o que estava acontecendo. Com muito esforço cinco homens conseguiram tirar o Ferreiro de cima do cunhado e contê-lo. Se tivessem demorado mais um pouco a chegar, o Ferreiro teria matado o homem de porrada. Estava com tanto ódio que nem sacou seu punhal ou espada. Queria matar o agressor da sua irmã com as próprias mãos.
Antes de caçar, o Ferreiro também já havia ensinado o filho a confeccionar o arco e flecha usou os recursos que a própria floresta tinha a oferecer. Também ensinou-lhe a fazer uma besta, um tipo de arco e flecha adaptado, mais prático e letal. A besta era justamente a arma que usavam naquele domingo para caçar. Tudo que sabia ensinava ao filho. Quer dizer: quase tudo. As questões mais íntimas, que ficava constrangido de trata-las com o menino, pedia para a irmã ensinar. Como as mudanças físicas que acontecia na transição entre infância e adolescência.
A família vinha de uma geração de ferreiros. O pai fazia ferraduras para cavalos, enxadas e outras ferramentas de trabalho e peças de carruagem. O Ferreiro depois de aprender o ofício com o pai e ficar adulto descobriu que era mais rentável fabricar armas que ferramentas de trabalho e peças para carruagem. O pai alertou que era rentável, porém perigoso. Ainda assim o Ferreiro decidiu correr o risco. O conhecimento da profissão de Ferreiro era passado de pai para filho há várias gerações na família. O Ferreiro também estava passando o conhecimento para o filho. Mas o seu sonho era que o menino pudesse ir muito além disso. Que aprendesse a ler e escrever e ocupasse um cargo de respeito na corte. Que trabalhasse diretamente com o rei. Que a família, a partir do seu filho, deixasse a vergonhosa condição de plebe e conquistasse um espaço entre a nobreza.
Naquela época a leitura era um privilégio para ricos e poderosos. Ou seja, um privilégio para poucos. Só os nobres e os donos de grandes posses sabiam ler e escrever. O pobre que sabia ler era muito raro de encontrar. Para uma criança aprender a ler e escrever o pai precisaria ter muito dinheiro ou muita influência com alguém poderoso. Coisa que o Ferreiro não tinha: dinheiro e influência com gente poderosa. Só era procurado pelos poderosos quando precisavam do seu serviço. Fora isso nem era cumprimentado por eles quando os via passeando em suas carruagens luxuosas nas ruas.
Claro que guardava moedas de ouro, joias e pedras preciosas além daquelas moedas de ouro que deu para a mãe do seu filho sumir da vida deles logo que o menino nasceu. Mas se aparecesse oferecendo moedas de ouro para alguém ensinar seu filho a ler e escrever, as autoridades iriam querer saber de onde ele tinha tirado tanto dinheiro de uma hora para a outra. Pois a profissão de ferreiro não era tão lucrativa assim. E se não conseguisse explicar a origem das moedas ia acabar na forca ou na guilhotina. A única forma de gastar em segurança toda aquela fortuna que mantinha escondido, era mudando-se para um lugar bem longe dali. Mas não queria deixar sua irmã e seus pais para trás. E eles não deixariam aquele lugar para ir junto com ele. O jeito era ficar e manter o seu tesouro bem guardado.
Um belo dia a oportunidade bateu na porta do Ferreiro e a oportunidade chegou com um negociante de armas. Descalço, com a roupa rasgada, sujo e com um sangramento na testa, parecia mais um mendigo com hematomas, depois de uma dolorosa sessão de espancamento, que um negociante de armas. Negociantes de armas eram homens de muitas posses. Apesar de não serem bem-vistos por algumas camadas da população, principalmente pelos religiosos, circulavam entre os nobres e ricos e desfrutavam de influência com os nobres. Mas aquele homem esfarrapado não parecia um negociante de armas.
Depois que bebeu a água e agradeceu, contou que estava vindo de bem longe com sua comitiva composta por seis pessoas divididas em duas carruagens para encomendar uma grande remessa de armas. Já viajavam à semanas quando no caminho saqueadores fortemente armados os abordaram, renderam toda comitiva, e depois de assassinar seus companheiros de viagem, levaram os seus pertences, inclusive as moedas com que pagaria as armas. Daria metade do valor adiantado e a outra metade depois que estivessem prontas. Mas agora estava sem nada. Os bandidos roubaram até os cavalos que conduziam as duas carruagens e queimaram as conduções. Disse que só escapou da morte, porque o bandido que iria executá-lo se distraiu no momento em que um dos seus comparsas gritou que havia encontrado as moedas de ouro. Depois de arrombar um pequeno baú. Aproveitou a distração dos saqueadores para se embrenhar na mata correndo. Várias flechas quase o acertaram enquanto fugia. Mas escapou com apenas o ferimento na testa causado por um dos bandidos que o atingiu com o cabo da espada, quando perguntaram onde estavam as moedas de ouro e ele respondeu que não haviam moedas de ouro. Também estava com fortes dores nas costelas por causa dos chutes que recebeu enquanto estava caído no chão, logo após receber a pancada na testa com o cabo da espada.
Depois de fugir no meio da mata, correr e caminhar durante o dia inteiro, sempre com a sensação de que os bandidos estavam o seguindo e se parasse para descansar eles o alcançariam, ou uma flecha alcançaria seu coração, conseguiu a ajuda de uma família de camponeses em uma pequena propriedade rural de um pastor criador de ovelhas, que encontrou na floresta. Os cães do pastor quase não o deixaram se aproximar da casa. O pastor de ovelhas o recebeu com a arma em punho e ele se aproximou com os braços erguidos para mostrar que vinha em missão de paz e estava desarmado. O dono da propriedade desconfiou da história que o negociante de armas contou e por isso não aceitou hospedá-lo. Mas ofereceu-lhe alimento e água sem deixar que ele entrasse na casa da família. Depois de lhe dar alimentos e água indicou o caminho até a cidade, onde encontraria o Ferreiro. A cidade já estava bem próxima. Caminhou mais duas horas e chegou à casa do Ferreiro.
O Ferreiro, desconfiado abriu apenas parte da porta, depois de ouvir o homem rapidamente, antes dele concluir o interrompeu e falou que não poderia fazer nada, que ele procurasse a guarda real e denunciasse o caso. O negociante de armas alegou que a guarda real não acreditaria nele, já que todos os seus documentos haviam sido roubados junto com os outros pertences. Pela forma como estava vestido pensariam que era um andarilho qualquer mentindo para receber migalhas de comida e bebida. O Ferreiro aproveitou a deixa e perguntou:
- Se a guarda real não acreditaria na sua história, porque eu deveria acreditar? Eu nunca te vi na vida e você bate na minha porta de uma hora para a outra, parecendo um mendigo, dizendo que quer que eu fabrique uma quantidade enorme de armas, mas não tem nenhum centavo para me pagar. Muito pelo contrário, deve está precisando é de dinheiro emprestado. Que garantia eu tenho que você está falando a verdade e que eu não vou levar prejuízo se aceitar fazer as armas que você está encomendando? Sua palavra não basta. Com licença que tenho mais o que fazer. – O Ferreiro disse isso já virando as costas e fechando a porta.
O negociante segurou a porta pedindo mil desculpas por incomodá-lo e solicitou só mais um pouquinho da sua atenção. O Ferreiro de forma ríspida respondeu “Pois diga logo que eu tenho mais o que fazer e o senhor está me fazendo perder tempo e dinheiro”. Tomando cuidado para não contrariar o Ferreiro, o Negociante de armas escolheu bem as palavras para usar e disse no tom de voz mais brando e seguro possível. Precisava transmitir segurança e humildade para ganhar a confiança do homem. Impressionante como as pessoas ficam humildes quando estão na pior.
- O senhor tem toda razão em desconfiar de mim. Pois não nos conhecemos e a aparência com que me apresento agora não representa aquilo que eu sou e a posição que ocupo na sociedade. Vim de muito longe para fazer negócio com o senhor. Pois sua fama de fabricante de armas o precede. Conheci grandes guerreiros e muitos deles o citam como aquele que faz as melhores armas. Por isso atravessei o país para vê-lo. Infelizmente um trágico imprevisto me colocou na situação que me encontro no momento. Mas não sou um mendigo. Sou um homem de classe e que tem muitas posses, que sabe ler e escrever, uso roupas feitas tecidos caríssimos vindos do outro lado do mundo. Como pode ver, apesar de está rasgada o tecido da minha roupa é o mesmo tecido usado para fazer a roupa do rei, além do mais também faço minhas refeições com talheres de prata.
- Espera aí um instante. O senhor disse que sabe ler e escrever?
O negociante de armas confirmou que sim. Aquela era a oportunidade que o Ferreiro buscava para seu filho aprender ler e escrever. Mas antes quis que o Negociante provasse que realmente estava falando a verdade. Buscou pena e papel. Guardava em casa pena e papel, mesmo não sabendo escrever, para que o filho já tivesse o material em mãos quando a oportunidade chegasse. Para agradá-lo o Negociante perguntou o seu nome e o nome do filho dele. Escreveu os dois nomes no papel. O Ferreiro nunca havia visto o seu nome escrito num papel, nem o do filho. Ficou tão orgulhoso que mesmo desconhecendo todas as letras que estavam escritas o contemplou admirado e disse que faria um quadro e penduraria na parede.
- Então é assim que escreve o meu nome e o nome do meu filho.
Depois de ver o seu nome e o nome do filho escrito num papel o Ferreiro já deixou a rispidez de lado e convidou o Negociante para entrar e sentar. Buscou duas canecas de café e fez uma proposta para o Negociante enquanto bebiam. Faria as armas sem o adiantamento, mas apenas metade das armas que ele havia encomendado, desde que ensinasse seu filho a ler e escrever, em troca. Ofereceu hospedagem e alimentação e sugeriu que ficasse em sua casa enquanto as armas eram fabricadas. Neste período podia cumprir a parte no acordo de ensinar o garoto a ler e escrever.
A oferta era muito boa e mesmo que não fosse o Negociante não tinha outra opção. Aceitou a proposta do Ferreiro. Havia recebido muito dinheiro adiantado para fazer as armas. Dinheiro de gente perigosa. Por isso não podia voltar de mãos abandonando. Enquanto ensinava o menino e aguardava as armas ficarem prontas mandaria uma correspondência para seu sócio solicitando que ele enviasse uma outra carruagem para levar as armas e que mandasse também dinheiro, pois lhe levaram tudo no assalto.
Ninguém sabia que o Negociante tinha um sócio. Nunca os viram juntos. Para a maioria das pessoas o seu sócio na verdade era seu inimigo mortal. Mas tudo não passava de encenação. O Negociante fingia não ter nenhum laço de amizade com seu sócio porque numa guerra ambos vendiam armas para exércitos diferentes. Não pegaria bem se alguém soubesse que ele era aliado do cara que fornecia armas para o exército inimigo. Por isso o sócio e o Negociante fingiam não se conhecer. Desta forma os negócios iam muito bem, obrigado. Até porque se descobrissem que ambos eram sócios os dois seriam executados pelos próprios exércitos para os quais forneciam armas. Numa guerra tem que os matam, os que morrem e os que lucram.
Na verdade o Ferreiro já sabia que o Negociante estava falando a verdade. Que realmente era um negociante de armas e que havia sido assaltado na estrada. Sabia, porque o Ferreiro era um dos assaltantes. Justamente o assaltante que acertou o Negociante com o cabo da espada e iria mata-lo quando o seu comparsa gritou que havia encontrado o baú com as moedas de ouro e o Negociante aproveitou a distração para fugir. Se assustou quando o Negociante bateu à sua porta com a cara quebrada. Pensou que o homem havia descoberto quem era ele e vinha mata-lo e buscar o ouro de volta. Mas depois de ouvi-lo percebeu que o Negociante não sabia de nada. Por isso o deixou entrar e fizeram um acordo. Mas antes de abrir a porta já estava pronto para mata-lo e para não ser preso inventaria que o homem tentou invadir a sua casa.
O acaso levou o Ferreiro a se tornar um saqueador. Numa manhã estava caçando sozinho quando escutou gritos de socorro e cavalos relinchando, vindo da estrada. Caminhou pela mata lentamente, evitando pisar nas folhas secas, para que ninguém percebesse sua aproximação. Queria ver o que estava acontecendo. De dentro da mata viu um grupo de homens mascarados saqueando uma carruagem e matando os viajantes. A ação durou pouco tempo. Quando os bandidos fugiram se aproximou para ver de perto o estrago. Os ladrões deixaram para traz um saco com moedas de ouro que estavam derramadas no chão. O Ferreiro recolhia as moedas apressado, olhando para os lados para ver se os bandidos não voltavam para buscar ou se alguma outra pessoa aparecia. Neste momento uma das vítimas caídas no chão, suspirou alto como se acordasse de um coma profundo e em seguida pediu ajuda sem se levantar de onde estava. Mesmo com um enorme furo de espada na barriga ainda estava viva. Era uma mulher loira. Pela forma como estava vestida e sua pele limpa e seu cabelo bem arrumado, com certeza devia ser muito rica. Até a diadema que usava no cabelo era revestida com pedras preciosas. Parecia mais a coroa de uma rainha. O Ferreiro olhou para a mulher pedindo ajuda e para as moedas de ouro. Nunca tinha visto tanto dinheiro na sua vida. Com o que ganhava e as despesas que tinha jamais conseguiria juntar tantas moedas de ouro. Se aproximou da mulher, sentou sobre o tórax dela e terminou de matá-la estrangulada. Pensou que se não a matasse e levasse as moedas de ouro ela o denunciaria. Depois que a matou tirou a diadema do seu cabelo e procurou outras joias que os bandidos tenham esquecido de tirar dos defuntos.
O Ferreiro havia reconhecido um dos ladrões antes da fuga. Os cabelos ruivos e uma cicatriz no braço direito lhe eram bastante familiares. Já havia bebido com aquele homem no prostíbulo. Dois homens tentaram agredir o ruivo um dia. Como o Ferreiro tinha ódio de um dos homens, porque este homem ficava com a mulher que ele gostava, uma das garotas do prostíbulo, e pagava melhor para a garota e por isso ela preferia ficar com o homem que com o Ferreiro. A mulher era aquela que depois viria a ser mãe do seu filho, por isso entrou na briga com a desculpa que iria defender o ruivo, mas queria mesmo era bater no seu rival. E bateu.
O ruivo ficou grato pela ajuda, pois certamente teria apanhado se brigasse sozinho com os dois. Por está muito bêbado. Naquela noite falou para o Ferreiro que a bebida e as garotas seriam por conta dele. Que poderia escolher qualquer uma que ele pagaria. Depois disso também fez alguns serviços para o ruivo. Ferraduras para seu cavalo, um escuto e uma espada que ele usava no dia do assalto. O Ferreiro conhecia de longe as armas que fabricava. Depois do assalto a carruagem encontrou o Ruivo no prostíbulo. Logo que o viu o Ruivo foi ao seu encontro, abraçou-lhe e o convidou para a sua mesa. Naquela noite o Ferreiro lamentou-se da profissão que tinha. Trabalhava muito e ganhava pouco. Queria dar uma vida melhor ao filho, ajudar os pais, mas o que ganhava dava mal para sobreviver. O ruivo caiu na manipulação do Ferreiro e prometeu que conversaria com uns amigos e lhe fariam uma proposta irrecusável. Uma oportunidade que mudaria sua vida.
Dois dias depois chegou para conversar com o Ruivo e seus comparsas em uma casa velha afastada da cidade. Já era tarde da noite. Sabia que dependendo do que dissesse ali não sairia daquele lugar vivo. Sob muita desconfiança o aceitaram no bando. Graças a liderança que o Ruivo exercia no grupo. Não era o mais inteligente. Mais era o mais corajoso. Ele teve a ideia de criar aquele grupo e fazer os assaltos. Quem não o respeitava o temia.
Logo no primeiro assalto o Ferreiro se mostrou habilidoso e destemido. Rapidamente conquistou o respeito do grupo. Mas ainda não era suficiente. Embriagou o ruivo enquanto comemoravam mais um assalto a uma comitiva de nobres. Depois de embriaga-lo, esperou ele ir sozinho para casa e o esfaqueou em uma esquina escura. Acusou os dois homens que brigaram com eles no dia que conheceu o ruivo. O bando se encarregou de matar os dois homens. De uma vez só o Ferreiro se livrou do líder do bando e passou a ocupar o lugar dele, e do homem que disputava a atenção da mulher que ele gostava.
Liderando aquele bando de saqueadores assassinos o Ferreiro conseguiu juntar o tesouro que guardava a sete chaves. Depois de acumular muitas riquezas. Matou um por um os integrantes do bando. Para sair do negócio precisou antes eliminar as testemunhas. Sabia que se saísse eles viriam atrás dele e o matariam, assim como matariam também o seu filho, seus pais e sua irmã. O assalto a comitiva do negociante de armas foi o último. Depois disso nunca mais se ouviu falar nos “Saqueadores da Floresta”.
O Negociante ensinava o menino a ler e escrever na mesma velocidade com que o Ferreiro preparava as armas. Não pretendia se adiantar e nem se atrasar. Quando as armas ficassem prontas já queria o menino lendo e escrevendo para logo em seguida receber a mercadoria, pagar e dar o fora dali o quanto antes.
O menino se chamava Calebe. Era inteligente e disciplinado. Aprendia rápido as lições que o Negociante lhe ensinava. Em poucas semanas já conhecia o alfabeto e sabia formar as primeiras palavras. Calebe gostava mais das letras que de caçar ou aprender o ofício de ferreiro do pai. No momento que escreveu a primeira palavra e entendeu o que estava escrito, descobriu o que queria fazer pelo resto da vida. Mesmo aprendendo a ler e escrever continuava aprendendo as coisas que o pai lhe ensinava. Por isso saiu naquela manhã para caçar com ele na floresta. Aquela altura o Negociante já havia recebido do seu sócio uma outra carruagem com comitiva e dinheiro. Tinha se mudado e aguardava as armas ficarem prontas hospedado em uma pensão. Mas todos os dias ia à casa do Ferreiro ensinar Calebe a ler e escrever e acompanhar a confecção das armas.
Já estavam há mais de quatro horas na mata caçando quando o Ferreiro avistou no chão as pegadas de um servo adulto. As pegadas eram recentes. O cervo havia passado por ali há poucos minutos. Provavelmente estava perto. O Ferreiro pediu para o garoto fazer silêncio quando algo se mexeu atrás de um arbusto enorme que ficava do outro lado de um riacho estreito e raso. Com água a altura da canela. O arbusto se mexeu novamente. Era o cervo. Sussurrou o Ferreiro ao filho. A besta já estava armada com a flecha. Na terceira vez que o arbusto se mexeu o Ferreiro disparou. Logo em seguida ouviu um grunhido alto. Acertou o alvo. Mas como o cervo não saiu detrás da moita se aproximou lentamente já com outra flecha armada na besta. Mandou que o filho o acompanhasse atrás dele. Calebe rezava para não precisar atirar a sua fecha. Na verdade não queria nem ver o cervo sangrando e agonizando. Estava pensando o que faria na hora que fossem limpar o cervo: tirar a pele, os fatos e cortá-lo em pedaços. Pois estava certo que desmaiara logo que visse o animal sendo aberto e decepcionaria o pai que pensava que ele gostava e tinha vocação para a caça.
Quanto mais próximo chegavam dos arbustos, mais altos ficavam os grunhidos. Para a surpresa de Calebe e do Pai, atrás da moita não havia nenhum cervo. Só um homem esquelético com uma flecha fincada no ombro direito e gemendo de dor. Mal dava para ver o rosto do homem, a barba enorme e o cabelo cumprido cobriam quase toda sua face. Apenas os olhos e os lábios estavam avista. Seu corpo era só pele e osso. Parecia que não comia há semanas. A fraqueza causada pela fome e pela sede não lhe deixava pronunciar nenhuma palavra. Apenas gemia. Suas roupas estavam velhas e rasgadas. Seus pés cheios de feridas e inchados. A sua pele escura denunciava que havia pegado muito sol e que não era dali. Pois naquela região as pessoas tinham peles muito brancas. A Calebe percebeu que o homem estava tentando falar alguma coisa e encostou o ouvido perto da boca dele.
- Pai ele disse água.
O Ferreiro pegou o cantil que carregava com água, colocou a cabeça do homem em seu colo e lhe deu um gole. O homem bebeu, engasgou e tossiu, mas logo em seguida abriu novamente a boca, com muita dificuldade, indicando que queria mais água. Depois do quarto gole, balbuciou mais uma palavra. O garoto aproximou novamente o ouvido da boca do homem.
- Ele disse Crispim, pai. Seu nome é Crispim, moço?
O homem abriu e fechou os olhos num gesto afirmativo. Pois não estava conseguindo mexer a cabeça. Sim. Crispim se tornou o primeiro homem da história a conseguir atravessar o Deserto Sem Fim. Pagou um preço alto. Mas conseguiu. Estava esquelético, debilitado. Mas conseguiu vencer o inferno de areia e chegar a um país desconhecido que ele nem sabia que existia.