A mulher do tacho que virou a Joana D`arc Capixaba

Mais lenda que história

14 de outubro de 2021
atualizada em 14 de outubro de 2021
Foto reprodução do Jornal A Gazeta
Foto reprodução do Jornal A Gazeta
Temos em Vitória uma famosa escadaria de granito, balaústres, lâmpadas de luz branda, em led, para melhorar a iluminação noturna e uma placa: Escadaria Maria Ortiz. Segundo historiadores ela se tornou o símbolo da vitória dos capixabas na defesa da cidade dos piratas holandeses no século XVII.
 
Fomos a caça de traças e cupins. Nos deparamos com os seguintes documentos: - A Carta Annua do padre Antonio Vieira (1626); A Relação Universal de Manuel Severim (1627); A História do frei Vicente do Salvador (1627); E os Annaes de Johannes de Laet (1644).
 
Folha por folha, observamos que as fontes contemporâneas (que viveram ou existiram na mesma época) não citam o nome de nenhuma mulher. Falam de lutas, personagens, etc., mas nem de raspão nominam o nome que consagrou a mulher que afastou os holandeses com um tacho de água fervente. Uma delas chega até dizer que mulheres e crianças deixaram o local e se refugiaram nos arredores. Enfim, quando a mulher do tacho sem nome veio à baila?
 
Somente em 1675 Francisco de Britto Freire em sua obra “Nova Lusitânia, História da Guerra Brasílica”, cita a tal façanha nas linhas finais:
 
“Ridículo successo do Almirante Perez (…) tornando em o dia seguinte, a experimentar no segundo combate, o primeiro successo, huma molher Portuguesa, escolheu ao Perez por singularidade na differença do trajo, & lugar da pessoa, para lançarlhe do alto da casa, hum tacho de agoa fervendo sobre a cabeça. Não o pode molestar braço algum varonil, & molestou-o aquela mão feminina.”
 
Uma bela obra, mas não cita o nome da mulher do tacho!
 
Em 1698, surge a obra “Istoria delle guerre del regno del Brasil”, de autoria de Giovanni Gioseppe di Santa Teresa, onde ele cita o fato:
 
“Onde sdegnato il Petrid della fortuna, e fommamente arrossiro dello scherzo quivi fattogli da questa per mano di una donna Portoghese, la quase salita sopra la muraglia gli getto sopra la lesta un caldaio di acqua collente, che con gran risa de gli assediati, e parimente de i fuoi in estremo lo molestò; se ritirò subito all’armata, e frese indirittura il viaggio verso Olanda.”
 
Aqui também o nome da mulher do tacho não aparece! O que se nota é que o assunto é tachado com algo ridículo.
 
Em 1815, Gioseppe di Beauchamp publica sua Histoire du Brésil. Essa obra também citou o feito da mulher que derramou água fervente sobre os holandeses. Mas caiu em “desgraça” na década de 1840, acusada de plágio.
 
Em 1817, ao publicar sua Memória Estatística da Província do Espírito Santo, Francisco Alberto Rubim assim fala da ofensiva holandesa de 1625:
“Em Março de 1625 deu fundo na barra uma armada holandesa de 8 velas. Fizeram seu embarque e se fortificaram em diferentes pontos da costa e ilhas. Nos dias 12 e 14 atacaram a vila e foram repelidos, de que resultou retirarem-se vergonhosamente. Não consta o nome do comandante holandês, detalhes destes combates, nem quais foram os Portugueses que mais se distinguiram; e só consta que a câmara por muitos anos no dia 6 de Agosto fazia uma festa em ação de graças pela vitória alcançada aos Holandeses.” Numa leitura rápida se nota um nada consta!
 
Em 1858, José Marcellino Pereira de Vasconcellos, publica a obra de Ensaio sobre a História e Estatística da Província do Espírito Santo. Vasconcellos, ao escrever sobre o episódio de 1625, contou:
 
"Por este tempo cruzavão os hollandezes os nossos mares, e pretenderão assenhorear-se de nossas terras em differentes pontos; e pois em maio de 1625 o almirante Patrid com uma armada de oito véllas deu fundo na barra da capitania, fez seu desembarque, e se fortificou em differentes pontos da costa e ilhas; – mas nos dias 12 e 14, em que se abrio um combate, por atacarem a villa, forão repellidos, retirando-se vergonhosamente. Refere Brito Freire, que no segundo dia, em que os hollandezes accommetterão a villa com maior intrepidez, experimentarião de certo melhor fortuna, si uma animosa mulher, posta á janella de uma casa aguardando a passagem do chefe, não derramasse sobre este uma caldeira d’agua fervente, que o fez retroceder, e desanimar a sua gente, declarando-se a victoria pelos habitantes com perda de 38 dos contrarios, que forão mortos, e 44 feridos. Chamava-se esta mulher Maria Urtiz. (…)”
 
Finalmente, surge o nome da mulher do tacho: Maria Urtiz! Mas, infelizmente também não cita fonte!
 
“E 1861, Braz da Costa Rubim, publica o livro Memorias Historicas e Documentadas da Provincia do Espirito Santo. O trabalho descreve em detalhes o ataque holandês de 1625, fundamentado em algumas das fontes já citadas. Mas omite a história da mulher, e muito menos cita o nome dela.”
 
Em 1868, o Jornal da Victoria publica:
 
“Fazem hoje 228 anos que uma esquadra hollandeza (…), segundo alguns historiadores (…), deu fundo na barra desta cidade, então vila. (…) Louvou à (…), bem como uma mulher (e que não lhe consignaram o nome!) que de um sótão (…) lançou sobre o comandante da tropa holandeza um taxo de água a ferver.”
 
Tudo muito estranho! Como poderia o jornal, dez anos depois da publicação de Vasconcellos, ao tratar da lembrança do ataque holandês, afirma que a história não guardou o nome da heroína? É como buscar uma agulha num palheiro! Todos os jornais das décadas de 1840, 1850, 1860 e a 1870 não citam o nome da mulher do tacho.
 
Com tanto disse me disse, em tom irônico, em 1881, o Jornal de Vitória publicou:
 
“Mais uma atleta! Maria Ortiz!
Esta heroína festejada pelos historiadores, a mulher destemida que corajosa e valentemente muito influiu na expulsão dos temidos holandeses (…) foi também infeliz, não mereceu o seu nome a mais pequena prova de reconhecimento da representante do município! A casa, a rua, deve seu nome! Nem uma pintura!”
 
Depois dessa, os políticos não perderam tempo. Colocaram nome na escadaria, em ruas e Maria Ortiz até ganhou uma “biografia”.
 
"A mulher do tacho que virou a Joana D`arc capixaba."
imagem de
Estêvão Zizzi
Advogado, pós-graduado em direto do Consumidor e autor de vários livros de direito. Trabalhou no Procon Estadual do Espírito Santo como Assessor Técnico, Chefe do Departamento Jurídico e Secretário Executivo. Fundador dos Procons de Guarapari e Vila Velha. Diretor Presidente do IDECON
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