Olhar de um farmacêutico sobre o Kit Covid-19 e novas terapias

Reflexão: o mesmo grupo político que promove o kit covid não combate as indústrias do tabaco e do agrotóxico

Cristiano Ricardo
17 de outubro de 2021
atualizada em 17 de outubro de 2021

Antes da pandemia, ainda numa campanha eleitoral que perdurou praticamente 4 anos, no ano de 2016 o atual ocupante da cadeira da presidência da república já desafiava a ciência e em especial a área de medicamentos. Ele e um grupo de deputados, de forma popularesca, distante de qualquer seriedade, defendiam que a Fosfoetanolamina deveria ser utilizada para pacientes com câncer. Esta ação despertou na população desconfiança sobre a possibilidades da indústria farmacêutica preferir que pessoas morram, e que durante seus respectivos tratamentos, versões de medicamentos com menor eficácia, porém com maior valor agregado poderiam estar sendo comercializados para que essas indústrias lucrassem mais. 

Esta teoria da conspiração é bastante intrigante, uma vez que o mesmo grupo político que promove esse tipo de discurso não combate a indústria do tabaco, que segundo o INCA, no Brasil mata por dia 443 pessoas a um custo anual de R$125.148 bilhões para o sistema de saúde e da economia. Também não interferem e não se preocupam com a liberação discriminada e ao uso de agrotóxicos que causam doenças como diabetes, obesidade, infertilidade, puberdade precoce e câncer, num cenário onde por semana cerca de 11 crianças morrem devido ao uso de agrotóxicos no Brasil. 

Agora, convido o leitor a acompanhar comigo, com um olhar mais técnico sobre os medicamentos, de onde surgiu a ideia de um kit covid, e quais seriam as possibilidades de sucesso na teoria e na prática com seu uso no tratamento contra o vírus Sars-coV-2.

Quando a doença Covid-19 começou a se fazer presente, apresentando uma complexidade de sinais e sintomas, buscou-se entender como o mecanismo fisiopatológico dessa doença funcionava; por onde a pessoa se contaminava; quanto tempo demorava entre a pessoa se contaminar e iniciar a transmissão; quais as possibilidades de se interromper a transmissão; como melhorar o processo de cura de um doente; e por que existem pessoas que possuem apenas sintomas leves e outras acabam indo a óbito; se há um padrão em tudo isso ou se não há um padrão em tudo isso; e, onde ocorre um ponto que diferencia os sintomas leves, médios e graves da doença...

Todas as perguntas, muitas delas desvendadas já no início e no momento em que o termo hipercitocinemia foi apresentado, a chamada "tempestade de citocina", abriram a possibilidade real de perceber medicamentos candidatos a frear esta síndrome. 

Mas o que seria essa hipercitocinemia? 

Para entender melhor, vou dividir a palavra em partes: HIPER significa SUPER, CITOCIN vem de CITOCINAS - proteínas que regulam a resposta imunológica e EMIA significa sangue. o que significaria muitas citocinas no sangue, numa resposta muito acima do necessário, desta forma algumas pessoas chegam neste ponto do processo com uma quantidade muito grande de citocinas sendo liberadas.

Com essa análise, olhamos para algo chamado "Mecanismo de ação" de vários medicamentos para sabermos se, em TEORIA, eles poderiam ajudar alguns em fases iniciais da doença para que essa tempestade não venha se formar, outros para tentar reduzir essa tempestade e ainda outros fazer com que o paciente, mesmo nessa tempestade, sobreviva.

Neste momento, uma grande lista de opções medicamentosas, assim como esquemas terapêuticos (no popular kit) foram propostos e com isso se fez necessário estabelecer pesquisa clínica para entender alguns pontos importantes: Qual a dose ideal para ser aplicada? Qual o momento certo de iniciar e parar o uso dos medicamentos? Quais os riscos desse paciente afetado por uma doença nova vir a ter problemas, já que o medicamento não foi desenvolvido para esta enfermidade? Quantos pacientes que não tomam nenhum medicamento e os que tomam este kit, ficam curados? Qual é a diferença em números? Quanto tempo demora para o paciente se curar? Oos medicamentos consegue curar ou apenas ampliar o tempo? Qual a possibilidade do paciente vir a óbito por outro problema, mas ter sido cura da Covid-19? Quais os riscos do kit reduzir a qualidade de vida de um paciente que poderia ser curado com outra terapia?

Além dessas perguntas, ainda cabem outras: Qual a melhor via de administração? Qual a forma terapêutica mais adequada? Que tipo de formulação pode ser mais eficiente? Quais níveis plasmáticos temos que aplicar desse composto para alcançarmos o efeito desejado para curar esta doença?

Quando observamos esses questionamentos, com seriedade, concluir que a ação de medicamentos utilizados para doenças reumáticas podem naturalmente ser transferidos para o tratamento da covid-19 na base da caneta é ignorar a complexidade do organismo humano. Novos medicamentos ou esquemas terapêuticos são sempre pensados nessa complexidade. Por exemplo, o uso da ivermectina para eliminar o SARS-CoV-2 do ser humano precisaria de uma concentração que poderia causar uma série de eventos adversos, pois existem diferenças entre teoria, experimentos in vitro), e consumo humano que devem ser observadas.

Para esclarecer os motivos pelos quais um kit funciona na tela do computador, do celular ou nas páginas de um livro, mas que na prática, se trata apenas de uma ferramenta política, preciso apresentar ao leitor alguns conceitos consagrados na área farmacêutica. Um deles é o do "Efeito Placebo" descrito pela primeira vez em 1946, que trata da porcentagem de seres vivos que melhoram independentemente de qual substância foi administrada ao paciente.

O mecanismo do efeito placebo não é muito claro, mas em toda pesquisa clínica precisamos comparar o placebo (formulação sem o ingrediente farmacêutico ativo - IFA) com a formulação com o IFA. A porcentagem do efeito placebo é calculada a cada pesquisa, por exemplo em 2015 foi publicado trabalho onde esse número chegou a 40%. Em outras palavras, um medicamento pesquisado em 2015 com efetividade aceitável curava 9 a cada 10 pessoas e a aplicação de medicamento sem efetividade científica curava apenas 4 a cada 10 pessoas.

Ao se olhar para esta realidade e observar os estudos na aplicação da hidroxicloroquina em comparação com o placebo, tivemos mais mortes ocorrendo em pacientes utilizando a hidroxicloroquina que utilizando comprimido de açúcar.

Toda pesquisa clínica séria leva em consideração a morte do paciente como fator determinante para gerar dados da conclusão. Ou seja, se cura alguns poucos e mata muitos outros, não tem como levar em consideração, não se trata de sorteio, bingo ou roleta russa, se trata de vidas.

Conforme o exposto neste artigo, o Kit Covid não se comportou como uma terapia alternativa eficiente no combate ao Sars-coV-2. E esta foi exatamente a conclusão de estudos científicos por todo mundo em que se avaliou a possibilidade do uso terapêutico do kit covid contra os sintomas e evolução do vírus Sars-coV-2 no corpo humano. Além de se provar completamente ineficaz contra a Covid-19, em alguns pacientes o kit covid mostrou-se prejudicial agravando o estado de saúde e aumentando o risco de morte.

Como pesquisador, farmacêutico experiente, e convivendo dia a dia com as indústrias de medicamentos, posso confirmar que tais conclusões os estudos científicos não são uma trama contra a humanidade em favor do enriquecimento ilícito das grandes farmacêuticas. 

Cristiano Ricardo, Farmacêutico, mestre em Farmácia, professor, consultor e Farmacêutico Responsável.

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