Livro: Porque as Pedras Existem

Capítulo IV: Como puxar "saco" para se dar bem na vida

4 de novembro de 2021
atualizada em 4 de novembro de 2021
Capa do livro Porque as Pedras Existem
Capa do livro Porque as Pedras Existem

A Primeira impressão que se tem de um governante e da sua Inteligência é dada pelos homens que o cercam.

Maquiavel

 

Quando estava com 17 anos, Calebe, o Filho do Ferreiro decidiu que queria ser escrivão do Rei de seu país. O escrivão tinha, entre suas principais atribuições, a responsabilidade de redigir manualmente os decretos e as correspondências do líder real. Além de ter vários outros atributos, era preciso possuir uma caligrafia e uma linguagem quase que impecáveis. Cada letra de uma correspondência real era desenhada com pena como uma obra de arte. Calebe treinava diariamente sua escrita buscando atingir a excelência necessária. Escrevia em papel, couro de animais, no chão, nas paredes, nas árvores... onde achasse espaço estava escrevendo. Escrevia até no ar com os dedos fazendo gestos, enquanto imaginava uma folha de papel invisível suspensa no ar. Ou usava sua imaginação para escrever dentro das nuvens.

Escrever bem era o menor dos obstáculos para se tornar escrivão. Um dos principais problemas era que o rei já tinha o seu escrivão oficial. E um escrivão só deixava o cargo se morresse, fosse promovido para uma função maior dentro do reinado, ou cometesse uma falha gravíssima, como ser acusado de traição, que o levasse a ser destituído do seu posto e tivesse a cabeça cortada pela guilhotina. O que não era o caso do escrivão do Rei. Que gozava de boa saúde e muita segurança. Ou seja, não morreria tão cedo. Além de possuir uma reputação impecável, nunca cometia erros que afetasse o seu trabalho. Sabia como ninguém esconder os seus problemas e fazer as pessoas acreditarem em qualidades que ele não possuía. Se resguardava de escândalos e principalmente, sabia agradar o rei. Por isso o rei o estimava muito e o tinha como confidente. O estimava a ponto dele ocupar duas importantes funções dentro do reinado: a de escrivão e conselheiro.

O rei confiava tanto no seu Escrivão, que designava-lhe a tarefa de organizar as orgias semanais que realizava com suas amantes sem que a rainha soubesse. No começo as amantes eram exportadas de terras longínquas e falavam línguas estranhas para evitar que comentassem com alguém próximo sobre os encontros regados à vinho, comida, música ao vivo, poucos homens e muitas mulheres. Cabia também ao escrivão obrigar a amante abortar se engravidasse do rei. Se porventura a criança nascesse, o Escrivão também se encarregava de dá fim ao herdeiro bastardo. Neste caso, a mãe tinha o mesmo destino da criança. As amantes eram coagidas a ficarem caladas. Caso contrário teriam as línguas ou cabeças cortadas. Todas recebiam um generoso pagamento. Era comum matar uma mãe que se recusava fazer aborto. O Escrivão fazia isso com tanta discrição que a rainha nunca suspeitou que o rei tinha amantes e nem o rei suspeitava que o Escrivão também organizava os encontros da rainha com os amantes dela e que a rainha também realizava abortos, já que preferia amantes negros e o rei era branco. Se engravidasse e o filho nascesse negro, como um dos amantes, o rei a mataria junto com a criança.

O escrivão além de conselheiro e cafetão do rei e da rainha, também orientava um grupo de jovens aprendizes: rapazes entre 12 e 18 anos. Os pais pagavam um alto tributo para que os filhos aprendessem os ofícios de escrivão e conselheiro reais. Geralmente, quando se precisava de um novo escrivão, o que raramente acontecia, escolhia-se um dos aprendizes do Escrivão. Ou quem já fora aprendiz dele. Só que para se tornar um dos aprendizes do Escrivão era preciso pertencer a uma família nobre, ou muito rica. Além de pagar um alto tributo que era dividido entre o rei e o Escrivão. A maior parte do tributo, claro, ficava com o rei e o restante ia para o bolso do escrivão.

O Ferreiro conseguiria pagar o tributo para que Calebe se tornasse discípulo do escrivão? Ele tinha um tesouro escondido desde a época em que saqueava carruagens. Guardou a riqueza justamente para garantir o futuro do filho, mas não teria como justificar a origem do dinheiro se pagasse o tributo. Um simples ferreiro não teria de onde tirar tanta grana exercendo apenas o seu ofício. Levantaria suspeitas sobre a origem da riqueza e acabaria na guilhotina.

Um outro rapaz, nas mesmas condições de Cabele, ou seja, um pobre sem títulos de nobreza que sabia ler e escrever, encontrou uma forma inusitada de chamar a atenção do Escrivão para se tornar um dos seus discípulos. Ninguém sabia ao certo como aquele rapaz aprendera a ler e escrever, se ninguém na sua família era alfabetizado. O fato que era muito inteligente e ambicioso. Movido pelo sonho e pela ambição, procurou o Escrivão do rei várias vezes no castelo com seus escritos em mãos para apresentar seu talento. Mas o Escrivão nunca o recebeu. Nas últimas vezes os soldados que faziam a segurança do local nem mesmo o deixaram entrar no castelo e ainda ameaçaram matá-lo se ainda aparecesse lá. Onde tinha uma cerimônia fora do castelo em que o escrivão estaria presente, lá estava o rapaz com seus escritos procurando uma brecha para entregar ao escrivão. Tinha certeza absoluta que se o Escrivão lesse pelo menos um parágrafo dos seus escritos o convidaria para ser seu discípulo sem custos. Pela simples honra de ser professor de um gênio. Era assim que o rapaz se via: um gênio. Supervalorizar os sofrimentos e os talentos é uma ilusão muito comum entre os jovens e os adultos carentes.

No dia em que conseguiu entregar um dos pergaminho com seus escritos nas mãos do Escrivão, o Escrivão estava em uma das carruagens da comitiva do rei que passeava pelas ruas da cidade celebrando uma data comemorativa, acompanhados por uma multidão que ovacionava o monarca do país. O escrivão apenas recebeu o papel, amassou e jogou no chão sem nem ao menos ler e nem disfarçar a indiferença. O pergaminho caiu dentro de uma poça de lama preta e os cavalos da comitiva do rei pisotearam o papel até desaparecer na lama. Mas aquela cena de desprezo em nada afetou o otimismo do rapaz. Se convenceu que o escrivão só jogou o pergaminho fora, porque não leu e só não leu, porque aquele não era o local e nem o momento ideal para entregar-lhe um documento tão importante.

O rapaz concluiu que precisava chamar a atenção do Escrivão real de alguma forma para não precisar procurar o Escrivão. O escrivão é que deveria vir procurá-lo. Refletiu melhor e chegou à seguinte conclusão: Por que chamar a atenção do Escrivão, se poderia chamar a atenção do rei que mandava no Escrivão? Durante incansáveis semanas, meses, o rapaz dedicou-se a redigir uma elogiosa carta citando e supervalorizando todas as virtudes do rei e atribuindo ao monarca virtudes que ele não tinha. A carta transformava o rei num herói, quase um semideus, um ser dotado de virtudes celestiais.

Na verdade, o rei era apenas um homem que comia muito e bebia mais do que comia. Tinha dificuldade de levantar da cama de manhã por causa do peso do volume da sua gigantesca barriga. Passava a noite roncando alto e soltando gases mais altos ainda. A rainha só conseguia dormir pela manhã quando o rei levantava. A noite, a rainha passava alternando o travesseiro nos ouvidos para se proteger do barulho dos roncos, em vão, e colocando a mão no nariz para evitar o cheiro os peidos fedorentos que o rei soltava. Em vão também. O fedor durava horas. Além de tapar os ouvidos e o nariz, a rainha também amaldiçoada o rei, silenciosamente, claro, enquanto sentia a catinga dos peidos e o barulho estrondoso dos roncos. Às vezes roncada e peidava ao mesmo tempo e os barulhos se misturavam ao ponto de não se saber o que era peido e o que era ronco. O sonho da rainha era que o rei morresse no meio de um daqueles roncos para se livrar daquele tormento diário.

O café da manhã do rei era carne de porco regada com vários copos de leite e várias taças de vinho. Às vezes terminava de beber o leite e engatava uma taça de vinho. Quando terminava o café da manhã já estava bêbado. Logo cedo, comia um filhote de leitão assado sozinho. Havia dias em que comia um filhote de leitão no café da manhã, outro no almoço, um na janta e ainda acordava de madrugada com fome. A vida do rei girava em torno de comida, bebida e orgias com as amantes que o Escrivão se encarregava de selecionar. O Escrivão sabia até a cor do cabelo, o tamanho dos seios, o formato do rosto e o perfil da personalidade das amantes que o rei gostava. A rainha nem se dava ao trabalho de buscar descobrir se o rei tinha amantes. Se tivesse, que continuasse tendo. Enquanto tivesse amantes deixaria de procurá-la na cama. Pensava a rainha. E ainda debochava: - Coitadas das amantes. Antes elas do que eu.

Depois de concluída a carta, intitulada: “As virtudes de um grande líder”. Que poderia chamar-se: “Como puxar saco para se dar bem na vida”, com o subtítulo: “Manual prático do puxassaquismo”. Mas para o rapaz pouco importava se estava rebaixando-se ou desfazendo-se da sua dignidade bajulando um escroto para subir na vida. Os puxa-sacos escalaram montanhas pendurados nas costas dos outros.

Depois que terminou de escrever, o Rapaz fez várias cópias da carta e saiu pregando nas paredes das casas e distribuindo nas mãos das pessoas com a ajuda de alguns amigos. Daquele jeito tinha certeza que a carta chegaria ao rei e ao Escrivão.

O chefe da guarda real arrancou uma cópia da carta que estava pregada na parede do castelo e entregou ao rei. O rei ao ler o conteúdo da carta ficou deslumbrado com os elogios que recebeu. Quis conhecer o autor daquele fabuloso texto que engrandecia suas virtude, além de lhe atribuir virtudes que nunca teve. Ficou tão encantado com as palavras elogiosas, que desejou ser aquele rei fabuloso que o rapaz descreveu. O rei da carta era muito melhor que o rei da vida real. Geralmente, as histórias dos homens são muito melhores que os próprios homens.

Já que não conseguiria se tornar o rei descrito na narrativa épica e fantasiosa, que pelo menos o povo acreditasse que ele era aquele rei. Concluiu que o autor da carta poderia ajudar-lhe a construir a imagem que queria que as pessoas tivessem dele. Chamou o Escrivão e ordenou que trouxesse à sua presença a pessoa que havia escrito a carta. O Escrivão percebeu que estava diante de uma iminente ameaça de perder o seu cargo para um moleque presunçoso, que queria chegar ao topo sem passar pelos obstáculos que ele passou, saltando etapas.

O escrivão para se tornar escrivão teve que mentir, subornar, bajular e ainda tinha que aturar diariamente os abusos de um rei asqueroso, que arrotava e ria na sua cara depois de ingerir vinho e leite, e ainda fingir que achou graça daquela nojenta estupidez. O bafo do rei causava-lhe ânsia de vômito. Sentia-se humilhado por ter que elogiar e submeter-se a um homem só por causa de um título que esse homem herdara. Mas que não tinha nenhuma virtude que o tornava digno de merecê-lo. O rei só era rei porque nasceu príncipe e depois que o pai morreu herdou o trono. O escrivaovendeu a sua alma e perdeu sua dignidade para tornar-se Escrivão e conselheiro do rei. Pagou um preço alto demais para se deixar ludibriar por um principiante.

Logo que o rei pediu para que lhe trouxesse o rapaz autor da carta, o Escrivão imediatamente pensou o que fazer para resolver a situação. Primeiro, disse ao rei que o autor da carta nunca existiu. Que ele mesmo escreveu o texto e mandou que espalhassem por todo reino para que as pessoas admirassem e amassem mais ainda o seu rei. Explicou que a carta teria mais credibilidade, se fosse escrita por alguém do próprio povo. Por isso usou um nome fictício para que as pessoas pensassem que o autor da carta era um simples camponês.

Extranho que os camponeses simples não sabiam ler e escrever. Salvo raríssimas exceções. Mas o rei embriagado pela vaidade não parou para refletir sobre isso. Ficou tão contente com a carta que mandou dar uma medalha de honra e moedas de ouro ao Escrivão. O escrivão tratou logo de ordenar aos soldados de sua confiança que encontrassem o autor da carta imediatamente e dessem um fim nele. Que não deixassem nenhum vestígio de sua existência. O rapaz sumiu misteriosamente naquele mesmo dia e ninguém nunca mais ouviu falar nele. A família do rapaz fugiu para bem longe e quem o conheceu silenciou-se para também não ser assassinado.

Calebe ficou sabendo da história por intermédio daquele que o ensinara a ler e escrever, o Negociante de Armas, que tinha informações privilegiadas do que acontecia nos bastidores da nobreza. O Negociante ainda matinha negócios com o pai de Calebe. Numa dessas transações o garoto falou do seu desejo de se tornar escrivão do rei. O Negociante, que tinha muito apreço por Calebe, contou-lhe a história do rapaz que havia escrito a carta. Depois de contar a história deu-lhe um valioso conselho:

- Se quer torna-se escrivão do rei, não cometa o mesmo erro que aquele rapaz cometeu. Não escreva uma carta elogiando o rei. Elogie o Escrivão.

Calebe seguiu o conselho do Negociante de armas e começou a colocar em prática o plano de escrever uma carta elogiando o Escrivão do Rei para chamar a sua atenção sem provocar a sua inveja, como fizera o outro rapaz ao escrever a carta exaltando o rei. Mas não podia ser uma carta qualquer. A carta devia ser mais bonita que o rapaz escreveu. O negociante de armas, sabe-se lá como, conseguiu uma cópia da carta que o rapaz escreveu e a deu para Calebe ter uma noção por onde começar. Mas antes de escrever a carta Calebe fez uma pesquisa minuciosa sobre a vida do Escrivão: suas qualidades, suas fraquezas, o que gostava de comer, suas ambições, onde mais gostava de ser elogiado... O Negociante de armas ajudou Calebe elaborar um histórico do Escrivão. Todo espaço público em que o escrivão se fazia presente, lá estava Calebe o observando atentamente. Passou meses fazendo este ritual de observação e coleta de informações.

Calebe tinha a pressa e ansiedade comum à juventude. Mas também era perfeccionista e a sua obsessão em fazer bem feito controlava sua ansiedade. Seguiram-se outros meses até chegar ao texto ideal. Refez a carta centenas de vezes. Mas antes de espalhar a carta pelo reino, submeteu-a a aprovação do Negociante de Armas que era um homem crítico e culto. Irradiaram luzes dos olhos do Negociante a cada frase lida na carta. Calebe acompanhou atento a leitura feita pelo Negociante. Sentiu-se aliviado ao ver a admiração no rosto dele. O negociante finalizou a leitura da correspondência com uma frase avassaladora: “Perfeito! Formidável! Bravo! Bravo, garoto!’’.

A Logística para distribuição da carta pelo reino ficou a cargo do Negociante. Com a ajuda dos vários contatos que tinha espalhado por todo país, em três noites a carta já estava em todas as cidades. Paredes de Castelos, bares, em feiras, conventos, mosteiros, igrejas, nos becos mais pobres onde era raro encontrar alguém que dominava a arte da leitura, lá estava uma carta. Em poucos dias a carta que Calebe escreveu elogiando o Escrivão ganhou mais alcance que a carta escrita pelo outro rapaz elogiando o rei. A carta chegou até outros países. Monarcas de terras distantes despertaram o desejo de conhecer o autor daquele texto e quem o inspirou. A popularidade do Escrivão, nos dias seguintes a divulgação da carta superou a popularidade do próprio rei.

O rei, ao saber da carta escrita elogiando um dos seus subordinados, ficou com o ego profundamente ofendido. Aquilo era uma vergonha pública. Um atentado contra a coroa um serviçal ser colocado acima do seu soberano. Um pensamento recorrente começou a poluir a sua mente: estaria o escrivão conspirando para tomar o trono real? Este pensamento se tornou uma certeza quando começaram chegar ao castelo convites para o Escrivão conhecer outros reinos. Além dos convites chegam presentes, joias, oferendas, propostas de casamento, pais ofereciam as mãos das suas filhas ao escrivão.

Príncipes, barões, reis, princesas queriam conhecer o escrivão e exigiam apenas que ele levasse o autor da carta junto. Sentindo-se ameaçado, o rei acusou o Escrivão de conspirar contra a coroa e de traição e ordenou que cortassem a sua cabeça. Poucas horas depois a execução aconteceu. O Escrivão nem teve tempo para elaborar uma justificar e salvar-se da guilhotina. O rei o condenou de manhã e ao meio-dia, enquanto almoçava um leitão e bebia vinho na sua extensa e farta mesa, observava sorridente a cabeça do escrivão cortada dentro de uma bandeja.

Depois de executar o Escrivão o rei ordenou que trouxessem a sua presença o autor da carta. Calebe chegou ao castelo do rei escoltado pela guarda real e com a certeza de que teria o mesmo fim do Escrivão. O rei ordenou que Calebe sentasse à mesa com ele e lhe servissem vinho e comida. Enquanto Calebe se obrigava a comer e beber para não fazer desfeita, o monarca lhe fez um breve interrogatório e disse-lhe que dali em diante ele seria o novo escrivão real. O Rei chegou à conclusão que se aquele rapaz era capaz de escrever coisas extraordinárias de um simples escrivão, imagine as belezas que poderia escrever sobre um rei.

 

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 Continua na próxima semana

imagem de
Uágno Lima
Radialista e poeta
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