Na Sala Com o Psiquiatra

Diário de um adicto

Natalino Molaes *
9 de dezembro de 2021
atualizada em 10 de dezembro de 2021
Foto ilustração
Foto ilustração

Confesso que fiquei ainda mais perturbado com a ideia de internamento e injeção...

Certa vez, surtado pelo uso abusivo de determinada substância, fui levado para o Adalto Botelho, em Cariacica-ES. Um sossega leão me trouxe de volta para casa. Foi uma passagem rápida.

É... para o adicto, só existem esses finais infelizes: instituições, delegacias e morte.

Os momentos que antecederam a internação foram marcados por tristeza e desejo de aliviar os sentimentos negativos. Esses sentimentos, percebidos pelas demais pessoas, foram cruciais para que a internação ocorresse.

Somente após estar internado, é que meus sentimentos foram percebidos e valorizados, até mesmo por mim.

Lembro, que minha companheira foi orientada no sentido de ser tratada e educada para aprender a conviver comigo e a doença durante as visitas e, principalmente, o momento pós-internação. Foi a primeira vez que ouvi a palavra Adicção. Poderia, como muitos, morrer sem saber de qual doença eu sofria.

Hoje, sei que luto contra uma doença chamada Adicção. Uma doença incurável, progressiva e fatal, caso não seja tratada com sucesso. Por isso, precisa ser estudada e vigiada vinte e quatro horas por dia. Só por hoje.

Coisa séria, tão séria, que não consigo vencê-la sozinho. Preciso de Deus! Preciso obedecer a um valioso programa e partilhar minhas dores com outros adictos, como também ouvir as dores de meus pares e aprender com elas.

Muitos pensam que morrem por “overdose”, mas não! Morrem por uma doença chamada Adicção, que sujeita levar muitos a uma “overdose”.

Na ala psiquiátrica do HPM, em um quarto que dividia com mais dois internos, sentado em uma cama, já com o uniforme azul, um pouco triste e desorientado. Buscava entender o que estava acontecendo, quando a enfermeira entrou e me chamou:

- Senhor Natalino?

Eu virei à cabeça, como quem espera o pior, e disse:

- Sim!

- O médico psiquiatra o espera na sala no fim do corredor.

Ainda atordoado, com um leve balançar da cabeça para frente e para trás, respondi. Saí do quarto e fui pelo corredor. Olhares e sorrisos de outras pessoas vestidas de azul, como eu, e de branco, iguais à enfermeira, me cumprimentavam.

Ao chegar à sala, fui convidado pelo médico a me sentar e começamos a nossa conversa:

- Bem-vindo ao HPM, senhor Natalino. O senhor conhece o Dr. Carl Gustavo Jung?

- Não! Ele é novo aqui?

Com uma cara de surpreso e de quem não gostou. O médico calmamente me indagou mais uma vez, agora usando um tom mais irônico:

- Não? Ele não é novo aqui. A Anita o senhor deve conhecer, pressuponho?

- Sim! Conheço, ela canta muito bem! Deitada no divã é incrível!

- Certo! O senhor é muito criativo. Não é atoa que está aqui.

Mas, foi o Dr. Carl Gustav Jung- psiquiatra e psicoterapeuta suíço- quem disse a um de seus pacientes, o senhor Rowland, lá em 1930, que não tinha mais esperanças de ver sua recuperação, sob qualquer perspectiva do tratamento médico ou psiquiátrico, que ele pudesse estar envolvido. E, que só mesmo tornando-se objeto de uma experiência espiritual, ou religiosa, ele poderia ter de volta a sua sanidade. O senhor Rowland vinha de muitas recaídas com a bebida alcoólica.

- O senhor já não usa álcool há 11 anos, é o que diz aqui no seu prontuário.

- Sim, é verdade! Respondi.

- O senhor acredita em Deus, senhor Natalino? Já viveu uma experiência mística?

- Eu não sei dizer - respondi de cabeça baixa...

- A adicção é uma doença migratória, muda o vício, mas a doença é a mesma. É como o rio, mudam-se as águas, mas o curso continua, também, o mesmo. 

- Então, passa o tempo, mas somente o seu querer entregar a sua vontade e a sua vida aos cuidados de um Deus, da maneira como o senhor o compreende, pode ser capaz de conduzi-lo em uma recuperação segura e contínua. 

- O senhor precisa entregar o Timor e deixar que Deus conduza o navio, senhor Natalino. 

Nessa hora, lembrei-me da Luz que havia me levado até aquele hospital, até aquele médico e até aquele momento. E pensei: eu terei de volta a minha sanidade. 

- Deus está comigo!

Estou vivendo essa experiência espiritual agora.

Na volta ao quarto, encontro meus colegas ansiosos para saber sobre o conteúdo de minha conversa. 

Incrível, a fofoca está por todos os cantos, fazendo intrigas e causando brigas. É preciso cortar o mal pela raiz. A fofoca também é coisa de adicto.

- E aí como foi com o doutor, Natalino?

- Foi revelador!

- Mas o que ele revelou para você?

- Me foi revelado, que a curiosidade é um vício perigoso. O que mais mata os internos neste hospital.

Um olhou nos olhos do outro e em seguida cada um voltou para sua cama e não falaram mais nada por um bom tempo. Começava ali, novamente, o trabalho de mudança de pensamento e de correção do meu coração...

Eu sabia que seria uma peleja modificar o meu jeito de ser ao ponto de estar preparado para um dia, negar as drogas, e não a minha doença.
Deixar uma vida de ilusão e seguir a realidade não é tão fácil. Mas devo ter coragem de carregar a minha cruz e viver um dia de cada vez fazendo as escolhas certas, só por hoje.

No final do dia fomos chamados para participar de um grupo de oração em um salão onde, também, era servido o lanche da tarde. Comer é uma coisa que adicto internado gosta de fazer. E logo aprendemos que devemos rezar para agradecer a comida. 

Naquela tarde a pregação foi em cima da missão de Maria, mãe de Jesus. Maria teve uma trajetória repleta de provações e sofrimento, mas suportou com muita paciência. 

Imagine o quanto foi doloroso para Maria ver seu filho na cruz, por exemplo. É um exemplo a ser seguido por quem precisa aguentar a dor de largar alguns vícios e vencer uma doença.

Pensei comigo: a maneira como Maria confiou em Deus é uma inspiração para fortalecer meus passos em direção a minha salvação...

Logo depois fizemos a oração da serenidade no salão e foi servido o café. Era o meu primeiro entardecer internado em uma ala psiquiátrica.

Os dois colegas de quarto, sentaram junto a mim à mesa e meio sem porque me disseram:

- Quer o nosso pão? 

* Sobre o autor: Natalino Molaes nasceu no carnaval de 24/02/1971, filho da compositora Maria José Mota Molaes, é um escritor brasileiro. Conhecido por suas crônicas e contos de humor. É publicitário, redator, roteirista de comerciais para televisão e concept para planejamento publicitário.

Contato: natalinomolaes@gmail.com

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