Obsessão
Diário de um adicto
O desejo e a vontade de querer tirar vantagens de tudo, e de todos, sempre esteve em minha mente, a mente doentia de um adicto.
Para o adicto na ativa é difícil identificar defeitos de caráter desenvolvidos pela doença. A gente só sabe negá-los.
Imagine você, que as ditas “substâncias” são só a ponta do iceberg da doença. Tenho muito que aprender sobre o assunto, corrigir meus problemas evitando que se repitam.
Transformar “Raiva” em “Amor”, por exemplo, pode não ser tão fácil, quanto parar de usar. Só por hoje.
A Adicção é uma doença que se manifesta em todas as áreas da minha vida, sujeito a me levar à autodestruição. O “desejo” de “usar”, “trair”, “matar” “roubar” “sonegar” “mentir” “julgar”, “consumir”, “jogar”. São apenas instrumentos para que isso se realize.
À medida que o tempo foi passando, na ala psiquiátrica do HPM, fui me rendendo, aprendendo cada vez mais a identificá-los, chamando-os pelos seus verdadeiros nomes.
- Senhor Natalino? O senhor quer nos falar sobre uma de suas obsessões? Quer partilhar conosco? (Perguntou a psicóloga que acompanhava a nossa terapia de grupo no HPM).
- Sim! Quero Sim! Natalino adicto...
Todos:
- Fala, Natalino adicto...
Antes, durante alguns anos na ativa, meu pensamento doentio passou a seguir e incomodar uma mulher de maneira insistente. Uma insaciável obsessão.
Passei a desejá-la compulsivamente, intensamente. Passei a criar planos futuros, imaginar lugares, posições e diversas situações, que de forma exagerada, me enchiam de prazer sem ao menos saber qual seria a opinião de minha suposta amante. Sem ao menos tocá-la.
Alguns dos homens presentes na sala ouviam atentamente a partilha.
Frustrado por não ser correspondido, fantasiava ainda mais e mais sobre muitas realidades que gostaria ter vivido com ela.
Em meu caso, vivia um amor patológico imaginário e com todo cuidado para que ninguém desconfiasse, seria tudo perfeito. Parecia tão real. Tão absoluto! Que eu sentia o seu perfume em meus sonhos, onde ela me aparecia estonteante.
Sem saber, escrevia um lindo conto de fadas. E passado algum tempo, isso não acontecia mais só no banheiro, ou antes de adormecer, ou durante o sono, era o pensamento dominante e meu favorito. Parecia me caçar durante todo o dia. Eu estava sendo desafiado pelo desejo. Eu queria aquele objeto de qualquer maneira! Eu parecia ser escravo do meu pensamento, que me impunha fazer sua vontade e não a minha.
Eu cheguei a vê-la em outros corpos, andando na rua, na minha frente, me chamando. Mas quando eu ia, ela sumia. Nada mais me importava, eu só pensava nela e só a queria.
Ainda mais frustrado, a fuga sempre era para o álcool, cigarro e outras substâncias. Eu imaginava que poderiam, de maneira mágica, me trazer a coragem necessária para eu chegar até a ela. Mas, naquela noite seria diferente, pois foi quando resolvi partir para a ação indo até um lugar que me chamou a atenção, primeiro com uma luz vermelha, depois, vieram as roxas, lilás e o próprio brilho da noite.
O que me fez embriagar até que finalmente a encontrasse para realizar todas as minhas fantasias, até que adormecesse nos braços de minha amada fictícia.
Mas logo vieram os primeiros raios solares e a fantasia acabou. O pensamento caçador voltava a me caçar durante o dia, até, novamente, me dominar completamente e fazer com que, de novo, eu caísse em suas amarras, em seus nós.
O álcool, o cigarro, as drogas, a luz vermelha, a roxa, a lilás e aquelas mulheres não mais conseguiam preencher o vazio que havia dentro de mim.
Naquele momento, me senti ressentido por um amor não correspondido e por mais um derrame financeiro, ainda com raiva por não encontrar a saída e ter de encarar uma dolorosa realidade. Além do medo, de um futuro incerto. Quem sabe, a perda do emprego? Da família? Uma doença sexualmente transmissível? Ou outra coisa que a amnésia alcoólica não me deixou lembrar.
Sentia-me desorientado, sozinho, sem paz, sem esperança, sem forças.
Hoje, partilhar isso com vocês me faz bem, me alivia.
Não se assustem por eu fazer um profundo e destemido inventário moral de tudo o que fiz durante a minha drogadição. Faz parte do trabalho de recuperação. (Terminei a minha partilha assim)
Vou continuar fazendo o que me é sugerido para que Deus me devolva à sanidade. Sendo assim, eu não posso mentir mais, nem para Ele e nem para vocês. Para Ele eu nunca menti mesmo. Na verdade o único que eu realmente se enganou fui eu mesmo. Sim, é isso! O único enganado na história da Adicção é o adicto.
É claro que além de ficar limpo, parar de usar drogas, devo examinar bem direitinho o meu coração, procurando sentimentos que não são bons, que estão lá sujeitos a saírem pela boca. Isso vai mexer com os meus sentimentos. É preciso trocar ressentimento pela a aceitação, raiva pelo o amor e o medo pela fé. E isso é só o começo, tá?
Jesus, mesmo, disse: “... tudo o que entra pela boca desce para o ventre, e é lançado fora. Mas, o que sai da boca procede do coração, e isso contamina o homem. Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, formicação, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias. São estas coisas que contaminam o homem.”.
Porém, do coração vem a palavra que nos “salva”, como as ditas por Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim”.
Tá claro, que acompanhado da sanidade, as decisões são mais assertivas, mais cuidadosas e amorosas. Já não existem mais expectativas irreais. Mas isso, não quer dizer, que não estou sujeito a sentir raiva, por exemplo.
A perfeição está mais ali na frente. Obsessões, tumultos emocionais ou desequilíbrios, com toda a certeza estão sujeitos a acontecer comigo e com qualquer um ser humano encarnado hoje na terra. A propensão para o adicto é maior, sem dúvida.
Aqui do meu quarto, onde daqui a pouco vou dormir, faço algumas reflexões: Como Deus é paciente comigo. Ele está me dando mais uma chance para me arrepender de meus erros.
Enquanto minha esposa me procurava nas ruas para me levar para casa, eu estava atrás de uma mulher, atrás de drogas. Mas aqui estou tendo de aprender a ter paciência comigo mesmo primeiro, para depois ter com o outro. Como Deus é bom. E é isso mesmo!
- Quero ver se eu vou falar isso, quando tudo estiver passado, eu estiver recuperado, lá na praia, com tudo na mão para poder ir à biqueira e pegar a novinha... Só quero ver, senhor Natalino....
Um segundo antes de fechar os olhos, um dos dois colegas, ainda perguntava:
- Natal? Você tá falando sozinho?
* Sobre o autor: Natalino Molaes nasceu no carnaval de 24/02/1971, filho da compositora Maria José Mota Molaes, é um escritor brasileiro. Conhecido por suas crônicas e contos de humor. É publicitário, redator, roteirista de comerciais para televisão e concept para planejamento publicitário.
Contato: natalinomolaes@gmail.com