Felicidade

O Diário de Um Adicto

Natalino Molaes *
15 de dezembro de 2021
atualizada em
Foto reprodução
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Adicção é uma doença física, mental e espiritual e está sujeita a afetar todas as áreas da minha vida. É realmente uma coisa do outro mundo.

Quando o médico disse que eu precisaria de um programa espiritual para tratar a minha adicção, eu pensei que fosse tomar uns remédios, uns passes, rezar, passar na casa de alguma benzedeira e que estaria tudo resolvido. Mas, não!

Para tanto, eu preciso reconhecer ser impotente perante as drogas, acreditar que um poder maior do que eu mesmo venha me devolver à sanidade e, entregar, a minha vontade e minha vida aos cuidados desse poder maior. É preciso ser bem honesto comigo mesmo. Não vai ser fácil. “Não há nada que engane tanto como o coração humano”.

Falar de todas aquelas coisas imorais e ilegais que fiz, obedecer a um programa espiritual, que vem me ensinar como chegar a Deus, não é tão fácil. Contar todos os meus segredos, ressentimentos, mágoas, tretas, traições, corrupção e safadezas. Como irei admitir tudo isso a Deus. Você tem noção da profunda vergonha? Tem?

Mas como eu não tive vergonha de ir usar e fazer todas as aquelas coisas, que causaram problema e dor para minha família? Eu, um arrogante, egocêntrico, mentiroso, covarde, incapaz de ser honesto comigo mesmo, precisava me prontificar para falar com Deus. E essa conversa era para ontem.

Tudo o que vinha em minha cabeça, era imagem de um velho com um chicote na mão. Quem dera, juro que pensava, que isso fosse acontecer só quando eu morresse. Será que eu morri? Será que essa é a experiência espiritual que o médico falou? Pode ser sim, as noites andam tão escuras, tão perigosas... mas só mais uma pergunta: Será que ele já não sabe de tudo? Será que realmente é preciso eu falar com ele? Deus sabe de tudo.

Tá vendo como a mente do adicto funciona? Totalmente avesso a um modo de vida que requeira rigorosa honestidade. Para vencer essa doença, a primeira coisa que preciso fazer é olhar com todo carinho para mim mesmo. Estou doente! Preciso de ajuda.

Percebendo a doença como fonte de grande sofrimento, assim aprenderei a conviver com os meus iguais olhando-os cada vez mais com o mesmo amor e carinho que olho para mim. Desta maneira descubro estar olhando para Deus e conversando com ele. Novamente, percebo que Deus usa as pessoas para falarem comigo. Nessa conversa, falamos sobre recuperação, remoção de pensamentos insanos, angústia, vazio, sufoco e desespero ocasionado pela Adicção. Oramos juntos, pedimos por nós e por vós.

Para alguns do grupo, as chances de terem desenvolvido esquizofrenia durante sua adicção ativa era real. O choro era inevitável. A distorção da realidade, alterações comportamentais e alucinações, poderiam acontecer no segundo seguinte ao choro, ou ao sorriso. Mas todos ali naquela ala, daquele hospital, só aceitavam serenos as coisas que não podiam mudar, o resto estávamos com coragem e querendo transformar.

Não havia negociação com a nossa recuperação. Ninguém queria voltar ao pesadelo da ativa. Que coisa boa é querer lutar! Levantar da cama, abrir a janela e deixar o sol entrar. Assim, eu fiz naquela manhã. Estava decidido a contar tudo para Deus, abrir o meu coração.

Ao chegar ao refeitório, percebi sentada à mesa uma moça, eu ainda não a conhecia. Por detrás dela havia uma inscrição na parede, que dizia assim:

“Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente, serão meus discípulos e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”

...de repente, uma voz veio do fundo do refeitório:

- Bom dia senhor Natalino! Junte-se à Diana para tomar o seu café, só faltam vocês dois. (Disse-me a servente responsável por servir o café)

Sentei-me à mesa de frente para a moça, que aparentava ter uns 30 anos. Uma morena que, certamente, vivia em situação de vulnerabilidade e rua antes de chegar ao hospital. Os seus olhos brilhavam enquanto me acompanhavam... levando a mão ao peito, ela respirou profundamente como se sua imaginação a levasse, por encanto, a um belo jardim.

Eu juro! Assim eu pensei e assim ela me perguntou:

- Após nosso café, gostaria de colher flores comigo?

Após um suave silêncio, respondi:

- Sim! Claro que sim!

Não tinha muito que fazer ali na ala de psiquiatria de um hospital. Estávamos tomando o café, em busca de recuperação, eu e uma interna, aparentemente “normal” (como eu? “só que não”, entende?). Chamou-me para colher flores, simples. Porque haveria algo de errado nisso?

Após um café com leite, um pão doce com manteiga, umas poucas palavras, nos levantamos e fomos para um espaço verde do lado de fora do refeitório. Ao final de um gramado verde encontramos algumas flores. Diana conversava com elas: “meninas, temos visitas”.

- Agora feche os olhos, faça um pedido; escolha uma delas.

-Está bem!

- Me diga qual você escolheu?

- Aquela ali, disse a ela, apontando para uma rosa.

- Aquela é a preferida de todos. Todos a querem, mas bem poucos a possuem.

-Por quê? Perguntei intrigado, pois a rosa continuava ali.

- Porque procuramos por ela no lugar errado e pelo caminho errado.

- Mas se todos a procuram, porque ela ainda está aí?

- Na verdade, o que está ali é só uma lembrança para fazer com que você se recorde do que se passa dentro de ti. Você ainda não se lembrou do que precisa fazer?

- Como é que é? O que tem no café? Em mim ainda não fez efeito.

- Por favor, o que estou querendo lhe ensinar pode transformar sua vida.

-Tá! Vamos deixar nossa conversa mediúnica com uma rosa para outro dia, tá certo? E vamos entrar. Preciso tomar meus remédios.

- Tem certeza que não quer saber o nome dela?

- Rosa? Tá bom! Qual o nome da rosa? Você me fez lembrar Umberto Eco agora.

Hipnotizado pela energia da rosa, em um momento me pareceu ter sentido que a tristeza, ou outro sentimento ruim, algo dentro de mim transmutou-se. Comecei a sentir uma sensação muito boa, coisa que nunca senti antes... foi quando Diana disse:

- O nome da mais bela das flores é Felicidade!

* Sobre o autor: Natalino Molaes nasceu no carnaval de 24/02/1971, filho da compositora Maria José Mota Molaes, é um escritor brasileiro. Conhecido por suas crônicas e contos de humor. É publicitário, redator, roteirista de comerciais para televisão e concept para planejamento publicitário.

Contato: natalinomolaes@gmail.com

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