A série Passaporte para Liberdade, da TV Globo

Aracy de Carvalho foi realmente o "Anjo de Hamburgo"?

27 de dezembro de 2021
atualizada em 27 de dezembro de 2021

A rede Globo está no ar com a sério “Passaporte para Liberdade' que aponta brasileira Aracy de Carvalho teria salvado judeus do Holocausto e se tornado heroína. Diz, ainda, ter várias fontes de pesquisa desse suposto heroísmos. Afirmam com todas as letras: “estamos diante de uma grande personagem que merece ter sua história contada e reconhecida mundialmente" 

 

Aracy de Carvalho (1908-2011) foi uma paranaense, filha de uma alemã, que na década de 1930 passou a trabalhar como chefe da seção de passaportes do consulado brasileiro em Hamburgo. Ela foi respeitada como heroína por conceder vistos a judeus, algo proibido na época, para que viessem ao Brasil e se instalassem aqui como moradores permanentes. Ela apenas não os identificava como judeus nos passaportes. Assim, podiam fugir do Holocausto. A sua maior proeza é que Aracy teria burlado regras para dar vistos brasileiros a judeus alemães que tentavam escapar do país.

 

Contudo, a história é outra para quem leu o livro dos historiadores Fábio Koifmam e Rui Afonso apresentam seus argumentos em um artigo publicado no livro Judeus no Brasil: História e Historiografia (2021), além da matéria publicada à BBC News Brasil. Ele e o historiador Rui Afonso, dois pesquisadores com mais de 20 anos de experiência nessa área, investigaram os vistos concedidos a alemães no consulado de Hamburgo entre 1938 e 1939.

"As evidências mostram que não havia heroína nenhuma nesta história", afirma Koifman. Ele pontua que as mais de 35 mil imagens de documentos e as informações reunidas por ele e Rui Afonso não confirmam com a imagem do Anjo de Hamburgo, como alguns se referem a Aracy por seu suposto heroísmo.

Koifmam e Afonso apresentam seus argumentos em um artigo publicado no livro Judeus no Brasil: História e Historiografia:

 

O primeiro é que nenhum dos vistos concedidos pelo consulado de Hamburgo a judeus alemães naquele período foi irregular. Todos teriam seguido as regras da época e sido autorizados pelo cônsul geral, Joaquim Antônio de Souza Ribeiro, ou seu cônsul-adjunto, o escritor João Guimarães Rosa, com quem Aracy se casaria depois. À época, o governo brasileiro havia decidido barrar a imigração de judeus estrangeiros no governo Getúlio Vargas.

A concessão de vistos permanentes foi suspensa, a não ser por exceções para quem podia depositar uma certa quantia no Banco do Brasil, tinha conhecimento técnico ou profissional relevante, ou era uma pessoa notória na sociedade. Aracy teria ajudado várias pessoas que não se encaixavam nisso ao dar vistos temporários, de turismo, para elas. Koifman e Afonso argumentam que ela não fez nada de errado — a concessão desses vistos era permitida e só foi interrompida em junho de 1939, três meses depois do último visto de turismo concedido no consulado de Hamburgo a judeus. Além disso, eles ressaltam que todos os vistos foram devidamente informados depois pelo consulado ao governo brasileiro. Em nenhum teria sido ocultado que foram dados a judeus.

 

Se houvesse alguma irregularidade, dizem os historiadores, o governo teria notado e cobrado explicações, e não há sinais de que isso aconteceu, de acordo com eles. Também não há notícias de que alguém que tenha recebido um visto em Hamburgo tenha enfrentado problemas ao desembarcar no Brasil, afirmam. Por isso, Koifman e Afonso sustentam que nada de excepcional aconteceu no consulado onde Aracy trabalhava. "Houve uma boa vontade ou outro motivo para a concessão dos vistos? Pode se dizer que sim, mas não há indícios de algo além disso", destacam. Koifman conta que uma das versões sobre esse caso diz que Aracy conseguia tirar a letra "J" que aparecia em destaque nos passaportes de judeus para identificá-los. "Mas todos os passaportes tinham J." "Outra versão diz que ela colocava os pedidos de vistos no meio dos papéis para o cônsul assinar sem ler, mas isso é absolutamente impossível", acrescenta Koifman. Quem alega isso não sabe muito bem como funciona a burocracia diplomática, afirma o historiador. "O cônsul nunca assinaria nada sem ler. E não é um único documento, são vários. Seria mais crível se dissessem que ela falsificou assinaturas." Outro argumento dos historiadores é que os consulados brasileiros de outras cidades portuárias da Europa, como Marselha, na França, e Antuérpia, na Bélgica, emitiram tantos ou mais vistos de turistas para judeus na mesma época. Consulados de cidades portuárias costumavam ser mais movimentados, explicam eles, porque delas partiam os navios para outros países e continentes, e era ali que os vistos costumavam ser pedidos. Mas aquele final da década de 1930 foi especialmente agitado. A intensa violência contra judeus na Noite dos Cristais, entre 9 e 10 de novembro de 1938, deixara claro que era preciso fugir da Alemanha. O governo alemão queria expulsar os judeus do país e tentava fazê-los sair por conta própria. As fronteiras só se fecharam para os judeus em outubro de 1941, diz Koifman. "Depois disso, Aracy poderia ter sido morta [por ajudar judeus], mas antes, não." Para o historiador, a brasileira não correu nenhuma risco grave. "Os alemães estavam interessados que os judeus saíssem, então, quem agisse neste sentido seria visto com bons olhos. E ela não tinha dificuldade de relacionamento com os alemães, quem tinha era o Guimarães Rosa", afirma. Koifman também diz ter encontrado incoerências nos depoimentos e documentos de pessoas que teriam sido salvas por Aracy. "As pessoas estavam assustadas, foram ao consulado, uma pessoa que falava alemão as recebeu com educação e encaminhou seu pedido. Depois, aconteceu o Holocausto e elas entenderam que aquele visto salvou a vida delas. É natural que eles sejam gratos a ela", pontua Koifman.

'Eu avisei a Globo'

O historiador diz ter compartilhado seus achados com profissionais envolvidos na série da Globo. A resposta da emissora: "respeitamos o ponto de vista" dos dois historiadores e ressaltamos que o programa é uma obra de ficção baseada em fatos reais. Enfim, sabemos que o tema mexe com o sentimento das pessoas e muitos ficam decepcionados com essa história, mas o trabalho do historiador é esclarecer os fatos reais e não viajar pelos caminhos de ficção: Ou seja, uma narrativa imaginária, irreal, criadas a partir da imaginação.

 

Fontes: Judeus no Brasil: História e Historiografia (2021) - Fábio Koifmam e Rui Afonso

 

Matéria na BBC News Brasil: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59707747

 

 

 

 

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Estêvão Zizzi
Advogado, pós-graduado em direto do Consumidor e autor de vários livros de direito. Trabalhou no Procon Estadual do Espírito Santo como Assessor Técnico, Chefe do Departamento Jurídico e Secretário Executivo. Fundador dos Procons de Guarapari e Vila Velha. Diretor Presidente do IDECON
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