Graças à vida

Em recuperação, logo me dei conta de que é preciso colocar em prática um ensino atribuído ao filósofo Confúcio: "temos duas vidas, uma segunda se inicia quando nos damos conta que só temos uma".

Aceitar a realidade de que não devo ficar preocupado com a vida após a morte, nem com o amanhã, nem tão pouco com a vida do outro, mas sim com o 'hoje' é o mais sensato para quem busca o silêncio e o recomeço. Já falamos nisso aqui.

No início, não foi tão fácil segurar o “Natalino” querendo controlar tudo e todos, mas que aos poucos vem sendo transformado pela prática do seu caminhar.

Acredite, a recuperação é um caminho que pode ser trilhado por qualquer um! Só precisa ter coragem, isso mesmo, agir com o coração. Como máscaras caem, os dias passam, o orgulho vai ficando de lado, novos sentimentos vão ganhando espaço no coração e a mudança acontece.

Conhecer, ainda mais, sobre a palavra daquele que é o “Verdadeiro Homem”, mesmo que o próprio não tenha nada deixado escrito, tem me auxiliado e clareado em muito o meu caminho de autoconhecimento e de aceitação de mim mesmo. E isso, vem me trazendo a felicidade que existe em mim.

 “Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”.

O jugo dos “Homens” é muito severo: para quem erra, o inferno!

A salvação é pela graça, o que significa que é gratuito e é algo que não podemos alcançar pelos nossos próprios esforços. Ela é um dom de Deus, pois ninguém é salvo pelas obras. Ora, não tenho controle sobre isso, nem eu, nem você, nem ninguém.

Hoje, em meu processo de Alforria, o objetivo único que me tem valor agora é o de me ver livre da adicção, fazendo-me uma pessoa capaz de se manter distante da opressão e dos opressores, deixando de ser escravo do vício.

Na visão do povo hebreu sobre a vinda do Messias ele os conduziria à liberdade e instalaria um reinado de paz, justiça e igualdade. Jesus veio a terra livrar o povo da opressão, mostrando o caminho para a verdadeira liberdade, que é conquistada pelo Amor.

Estou aproveitando a doença da adicção para aprender mais sobre esse caminho. Sobre o Amor. A doença da Adicção, com certeza, me “oprimiu” me impedindo de ser mais e me condenando a ser menos. Mas, vejamos agora por um outro lado...

Assim como Paulo Freire, patrono da Educação Brasileira, com a sua “Pedagogia do oprimido”, que contraria a desumanização e opressão que compõe a lógica neoliberal da elite brasileira.

O processo de recuperação, que venho praticando, integra várias técnicas psicológicas e o programa de "Doze Passos", orginalmente desenvolvido pelos Alcoólicos Anônimos e que depois serviu de base para a criação de várias irmandades de recuperação, como os Narcóticos Anônimos, tem como objetivo oferecer aos seus praticantes os passos para quem desejar ser livre da doença da adicção, "só por hoje".

Ao fim de cada dia eu sou questionado por minha consciência: será que faltei com o cumprimento de algum dever? Será que ofendi alguém, por algum motivo?

É assim que venho me conhecendo e examinando o que, em mim, precisa de reforma, para seguir em paz e feliz, rumo a liberdade.

Os Doze Passos apresenta para nós também, a liberdade de escolha de um forte elemento espiritual não religioso, onde a concepção de “um Deus” se apresenta da forma como cada um o entende e vê. Olha que legal!

Essa característica particular de não impor forma nenhuma de compreensão das coisas como a questão da espiritualidade, deixa claro a postura respeitosa, livre e democrática que existe em meu grupo de recuperação. É uma valiosa ferramenta que contribui para que os membros que lá freqüentam, permaneçam com um sentimento de pertencimento e autonomia quanto a forma de pensar sobre os assuntos lá tratados.

Hoje, começo a sentir essa "tal" liberdade praticando e renovando os "passos", indo as reuniões e, no meu caso, consigo compreender como disse: estudando a história de Jesus, Confúcio, Paulo Freire, entre outros, e suas lutas contra a opressão.

Mas durante muito tempo eu confundi liberdade com libertinagem e assim me prejudiquei, e prejudiquei muitos ao meu redor, indo de bom a mal em poucos segundos.

A vida é assim, mano, um tanto de certo e errado, bem e mau, preto e branco, e somo nós quem escolhemos, o que queremos. Assim eu caí nas garras do vício.

Fiquei ao lado de pessoas que tiraram proveito em negócios que não era o meu ramo. Na verdade, eu estava ali por um engano. Eu estava me enganano.

Acredite, encontrei muitas pessoas boas por aquele caminho também. Pessoas que me auxiliaram e que tenho verdadeira alegria e reconheço em qualquer lugar e hora, independente da posição social que eu, ou, a pessoa estejamos. 

Em uma de minhas internações, eu tinha 23 anos, em uma clínica para alcoolátras, em uma partilha, um dos companheiros disse: "eu era alcoolátra e ladrão de cavalos. Parei de beber, graças a esse programa maravilhoso, mas por minha vontade continuo a roubar cavalos."

O problema nunca esteve na substância, mas sim em nosso interior. É mais em baixo.

Cada pessoa só dá o que tem, só mostra o que é e só faz o que pode. Eu respeito.

Quero muito olhar e examinar o meu ninho.

Para Confúcio, que também foi perseguido por suas ideias de liberdade, sociedade culturalmente instruída, de amor ao próximo, justa e sábia, manter a consciência das vontades dos céus era o caminho a ser seguido.

Então, desde sempre, é pela graça que podemos reconhecer em nós e nos outros o altruísmo, um nobre sentimento. Uma pessoa altruísta se doa para o próximo sem esperar nada em troca. E eu não preciso ser o Robin Wood da parada para auxiliar a quem precisa. Basta que primeiro eu limpe o meu coração e entenda o que é preciso ser feito.

Menos, bem menos. Mas, só damos conta disso, quando reconhecemos que só temos uma vida, uma única chance para fazer. E que é preciso vivê-la no aqui e agora. Se tiver que recomeçar, tem que ser aqui e com o que se tem. Se não tiver nada, mano, lembre-se de quem tudo tem. Mesmo que tudo pareça mais difícil, pode ficar tudo muito mais fácil, também.

Estou começando a caminhar, nesse caminho da “recuperação” onde entreguei minha vida a um Poder Superior da minha compreensão e não do outro. Pude escolher acreditar em quem eu quiser, mas primeiro, tive que parar de mentir. Hoje, me sinto bem junto de quem também começa agora, de quem já havia começado há tempos atrás e aqueles que estão um pouco mais na frente ensinando-me o caminhar. Eu os respeito por estarmos juntos no mesmo objetivo, que é de nos livrar de um mal. Mas, respeito também aqueles que ainda não estão pensando como eu.

Engana-se porém, aquele que pensa que somos poucos e somos fracos. Não! A cada novo dia somos mais, somos muitos e somos fortes.

Hoje, o que me dá força e que, para mim, é um sinal bem positivo que estou no caminho certo é cantar e agradecer ao lavar o meu prato após comer.

A música que canto vem em um rítmo gostoso dizer para minha mente, que a ignorância e o desejo desenfreado de querer usar eu já não tenho mais.

Poder olhar para os meus pés e saber que eles estão me levando para o banheiro, onde vou escovar os dentes, depois para sala ler um bom livro e depois para o quarto dormir em paz. Isso me traz a certeza de saber que estou indo bem, em direção a liberdade.

Estou vencendo a mim mesmo, um pouquinho a cada dia. E sem pensar em passar a vida eterna em um paraíso de delícias.

Apesar de ter muitos comigo sentido e compartilhando a mesma dor, nesse momento, sei que posso contar só comigo. Daqui a pouco já poderei auxiliar o outro. Que felicidade!

Aqui, aprendi a necessidade de saber sobre a implacável Lei de Causa e Efeito e a necessidade da autocrítica consciente e profunda.

Aqui me dispôs a nunca mais ser desonesto, mesmo de forma branda. Isso até pode parecer demais, mas tenho que seguir enfrente com esse propósito, se realmente acredito que um poder maior do que eu mesmo seja capaz de remover defeitos de caráter do meu ser.

Mas, para tanto, devo ter coragem, agir com o coração, e fazer as devidas reparações as pessoas a quem prejudiquei.

Devo prestar atenção em meus pés, enquanto ando, para não cair em armadilhas colocadas pela minha própria mente em meu caminho. Devo buscar a única verdade, a verdade que realmente interessa e que pode realmente me levar a liberdade, a verdade sobre mim mesmo.

Não importa a quantidade de quedas e derrotas, o que importa é, se eu assim desejar, levantar!

A vida sempre irá me oferecer oportunidades de recuperação. É a tal da Graça!

Quando a dor de não estar vivendo é maior que o medo da mudança, é aí que renovo minhas opções e começo a mudar.

Eu tenho muitas reparações a fazer. Nossa! São tantas, que algumas farei em público, pois não sei se encontrarei com as pessoas que ofendi novamente.

Sempre me lembro que como publicitário fui muitas vezes, em troca de um bom dinheiro, um refinador de mentiras.

Em recuperação, aprendi que o que foi dito ou feito drogado, ou bêbado, foi desejado quando estava sóbrio. Bem, pelo menos tenho tido a coragem de agir com o coração, de vir até aqui e pedir uma segunda chance.

Essa segunda chance, se inicia a partir do momento que eu dei conta que só tenho essa chance única. E fica assim, leve para eu fazer essas reparações, falar esses meus erros e acertos, dessas lições durante meu caminhar.

Espero que ainda tenha muito a aprender, porque uma vida simples, tranquila, sem mentiras traz mais felicidade do que a busca pelo sucesso em um desassossego constante.

Quero a cada dia poder estar ainda mais feliz, como diz a Flávia da Veiga, uma mulher que sabe agir com o coração:

“ Todos nós buscamos a felicidade. E ser mais feliz é um direito nosso ”.

Uma vida egoísta onde só o "eu" importa não traz felicidade, na maioria das vezes, só sofrimento.

Quero ser compassivo, exercitar a gentileza, que gera gentileza, e um dia poder auxiliar o meu próximo.

Só por hoje: saiba que eu estou muito satisfeito com o meu presente para pensar no futuro.

Desejo à você o que quero para mim. Sou grato por sua atenção e amizade.