Neoliberalismo, apoio social e vulnerabilidade da vida
O neoliberalismo se coloca como uma racionalidade orientada para a constituição de uma nova subjetividade, de um novo modo de ser pessoa
O neoliberalismo se coloca como uma racionalidade orientada para a constituição de uma nova subjetividade, de um novo modo de ser pessoa, uma pessoa que se vê e que percebe a si mesma e às demais como "empresas".
Nos últimos tempos muito temos ouvido falar em neoliberalismo. Seja nos noticiários, nas mais diversas páginas de internet ou nas críticas direcionadas ao atual governo federal, o neoliberalismo tem ocupado parte das preocupações de amplos setores da sociedade. Mas do que se trata? O que queremos dizer quando acionamos esse termo?
A ideologia neoliberal ancora-se na exaltação do mercado, da concorrência e da liberdade da livre iniciativa empresarial, condenando de modo genérico toda forma de intervenção do Estado na economia. Para tanto, defende o fim do aparato de regulação estatal das relações de trabalho e dos mecanismos que supostamente cerceariam os empreendimentos dos atores sociais, vistos como entidades solitárias e abstratas, seres que agiriam exclusivamente a partir de escolhas racionais. Ainda mais, tais sujeitos são apreendidos como entidades individualizadas, descoladas de suas referências históricas, familiares, sociais e políticas. Nesse contexto, o sucesso e o fracasso dos agentes sociais passam a ser vistos como decorrência exclusiva de suas competências e incompetências individuais, desconsiderando o peso ou o lugar que os condicionantes sociais e históricos teriam sobre as nossas vidas.
Com isso, podemos afirmar que, para além de suas dimensões econômicas, o neoliberalismo se coloca como uma racionalidade orientada para a constituição de uma nova subjetividade, de um novo modo de ser pessoa, uma pessoa que se vê e que percebe a si mesma e às demais como "empresas". Toda a vida e todas as relações sociais passam a ser concebidas a partir de critérios econômicos e de maximização de lucros: a escola, a igreja, a família, o casamento, a educação etc., enfim, todos os aspectos da vida social são capturados pela lógica empresarial, ancorada no individualismo e no exacerbado espírito de competitividade. Mas quais seriam as consequências éticas que essa subjetividade – a caminho de se constituir como a hegemônica – teria para o conjunto da vida coletiva? De que forma uma subjetividade assim constituída poderá impactar nas relações que estabelecemos uns com os outros?
O caminho para responder a essas questões é longo, mas podemos arriscar algumas possibilidades de respostas. De um ponto de vista ético, a agenda neoliberal representa a implosão de toda a solidariedade social, valor considerado fundamental para a existência em condições mínimas de civilidade. Ao postular a urgência de um indivíduo descolado de suas referências sociais, estabelece-se o reino do "salve-se quem puder" e do "cada um por si". Não somos mais responsáveis pelos demais. Não estamos numa rede de relações com aqueles que são nossos conhecidos e com os que não são. Não dependemos mais uns dos outros (conhecidos e anônimos) para que a nossa existência seja viável.
No lugar desse sujeito dependente e interdependente, defende-se um sujeito que pensa exclusivamente em si mesmo e que tem como objetivo maior angariar o máximo possível de lucros e benefícios. Perde-se de vista a condição vulnerável e precária do ser humano, posto que só podemos viver em condições viáveis a partir da existência de uma rede de apoio social ampla e muitas vezes imperceptível. Nesse sistema, imperam as fantasias de onipotência e de invulnerabilidade que podem ser vistas em frases do tipo "No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus (coronavírus), não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho"1 - expressões que apontam para o delírio da onipotência que desconsidera o fato de que todos estamos entregues e condenados ao adoecimento e à morte, independentemente de nossos quadros de saúde ou de nossas condições financeiras.
Outra decorrência dessa "economicização" da vida encontra-se na implosão da política em favor do mercado e da economia. Penso a política aqui para além de sua dimensão partidária. Penso na política como a capacidade humana de, a partir da constituição de uma esfera pública para a qual seria garantido o acesso dos variados interesses sociais, construir as condições de possibilidade para a formação de um mundo comum, um mundo para todas as pessoas. Penso a política como a única esfera do humano capaz de construir esse mundo compartilhado e pautado na proteção das vidas, mas de modo especial daquelas cujas condições de existência são mais frágeis. Com a ideologia neoliberal verifica-se a erosão do poder popular e a eliminação do imaginário democrático, tão bem descritos pela cientista política Wendy Brown em seu texto Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. É nesse sentido que o neoliberalismo com a sua "economicização" da vida ameaça o campo, não apenas da política, como também o da ética. As demandas éticas chegam até cada um de nós vindas de fora, vindas do outro. As demandas éticas implicam no pensar e no refletir sobre quais são as responsabilidades que temos uns com os outros, sobretudo com aqueles que são radicalmente diferentes de nós. Ao colocar o econômico como o vetor da vida social, no qual os interesses financeiros ocupam a centralidade nas relações que temos uns com os outros, teremos, como consequência, uma relação instrumental com os demais, uma relação pautada apenas na obtenção de algum benefício (de preferência financeiro), deixando no limbo da desproteção aqueles que podem menos que nós. Com isso é possível afirmar que a partir dos postulados neoliberais há a substituição do cidadão (aquele que numa dada sociedade possui direitos e deveres e que se articula socialmente a partir do campo da política) pelo consumidor (aquele para o qual o acesso aos benefícios sociais é garantido na medida em que pode pagar por eles).
Outra importante esfera que tem sido alvo dos ataques neoliberais é a educação. Tais investidas têm se dado a partir de variadas frentes, dentre as quais destacamos: por meio da transferência de recursos públicos - que deveriam ser destinados à melhoria da educação pública - para o setor privado. Isso pode ser constatado por meio de várias situações recentemente vividas no Brasil: de um lado, durante as campanhas eleitorais de 2020, diversos candidatos país afora foram categóricos ao afirmar que – se eleitos - forneceriam uma espécie de voucher para que os pais e mães pudessem matricular seus filhos em escolas particulares. Trata-se de uma declaração aberta de desinvestimento e de descrença na capacidade e nos potenciais da educação pública, que tem sido alvo de intenso ataques ao longo de nossa história. Outra situação foi a que presenciamos por ocasião dos debates em torno do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e da Valorização dos Profissionais). Um dos momentos mais acalorados dos debates realizados dizia respeito à possibilidade de se destinar parte desses recursos para escolas privadas confessionais e sem fins lucrativos. Mais uma vez, recursos públicos sob a mira do mercado.
Presenciamos também esse avanço sobre a educação por meio das propostas de estruturação das matrizes curriculares verificada através do banimento, cada vez mais em curso, de disciplinas consideradas irrelevantes para a formação do estudante. Em seu lugar propõe-se um currículo voltado para a formação técnica e empobrecido em termos culturais, o que, certamente, comprometerá a formação integral de milhões de estudantes. Trata-se da defesa de um currículo "esvaziado" de suas dimensões políticas e de seus compromissos com a consolidação da vida democrática. E nesse sentido, a pesquisadora Martha Nussbaum é categórica ao afirmar que a montagem de currículos centrados apenas nos interesses do mercado constitui-se numa ameaça para a sobrevivência da própria democracia, na medida em que, para sobreviver, a vida democrática exigiria a presença de cidadãos portadores de uma série de características que apenas currículos ampliados, ricos em termos culturais, são capazes de fornecer.
Acredito que o tempo em que vivemos encontra-se marcado pela complexidade e pela diversidade de perspectivas acerca dos dramas que atravessam a vida social brasileira. No entanto, diante desse cenário complexo devemos nos perguntar sobre o tipo de sociedade na qual gostaríamos de viver. Essa é uma questão crucial, na medida em que a resposta que dermos a ela, pautará nossas posições políticas e éticas. Reconhecemos a necessidade de reformas em muitas instituições da sociedade brasileira. Contudo, como essas reformas devem ser feitas e no interesse de quem? O que deve ser mantido e o que deve ser retirado nessas reformas? O que fica e o que permanece atende a quais interesses? Temos vontade de viver numa sociedade na qual o individualismo exacerbado seja o valor mais importante e onde os nossos interesses pessoais devem ser garantidos, independente de quaisquer considerações éticas? Aliás, a ética, aqui pensada como essa demanda que nos vem de fora, de um outro, de um diferente, e que exige que respondamos quais são as nossas obrigações para com ele, tem algum lugar hoje nas nossas vidas? Tenho condições de arcar com os custos de uma sociedade na qual os serviços, hoje públicos e precarizados, venham a ser privatizados um dia? Ou opto pela luta social em favor da manutenção e do investimento e melhoria desses serviços? As perguntas são muitas, mas devem ser respondidas individual e coletivamente nos grupos de discussão familiar, nas escolas, nas igrejas, nos locais de trabalho, nas ruas e praças, ou seja, em todos os espaços nos quais o palavrear seja possível. É importante pensarmos no tipo de mundo que estamos vivendo e de que forma podemos contribuir para que ele se torne um lugar habitável para todas as pessoas, mesmo para as que são radicalmente diferentes de nós. O neoliberalismo opera pela precarização dos serviços públicos e não tem compromisso com os valores democráticos. A grande maioria da população brasileira usa e precisa desses serviços. Assim sendo, é possível concluir dizendo que a precarização dos serviços públicos nada mais é do que a precarização das vidas, de milhões de vidas. É uma forma de dizer que algumas vidas contam ou importam, ao passo que outras simplesmente não servem para nada ou não nos interessam. É nesse tipo de Brasil que você sonha viver e deixar para os que virão?
1 Leia mais em neste link. Acesso em 21 de março de 2021.