Fórum contra agrotóxicos pede que municípios do ES incentivem produção de comida sem veneno

Promotora pública e coordenadora do Fórum, Isabela de Deus Cordeiro, conta nesta entrevista exclusiva como o programa de agroecologia em Viana pode virar referência para outras cidades do ES.

25 de maio de 2022
atualizada em 25 de maio de 2022
Produção orgânica na região do Caparaó Capixaba atendida por assistência do Incaper, em click feito em 2017. Foto: Tatiana Caus/Incaper
Produção orgânica na região do Caparaó Capixaba atendida por assistência do Incaper, em click feito em 2017. Foto: Tatiana Caus/Incaper

Isabela de Deus Cordeiro é a coordenadora do Fórum Estadual de Combate aos Impactos de Agrotóxicos e Transgênicos (FECIAT). Titular da 6ª Promotoria Cível de Viana, Isabela é uma das articuladoras do programa de fomento à agricultura orgânica, que está sendo desenvolvido em cerca de 50 propriedades rurais naquele município. Nesta entrevista exclusiva, a promotora fala dos perigos para o agricultor, o consumidor e o meio ambiente do excesso de veneno usado nas lavouras. Conta, também, como surgiu a ideia do programa em Viana e da articulação entre instituições públicas e privadas. Revela, ainda, que pretende inspirar outros municípios capixabas a adotarem ações semelhantes.

Como surgiu a idéia de implantar um programa de fomento a produção de alimentos sem agrotóxicos em Viana no Espírito Santo?

Como promotor de Justiça a gente não faz nada a não ser no âmbito territorial, de algum lugar. O município de Viana se mostrou um grande parceiro e abraçou esse projeto. No FECIAT a gente percebia uma pauta muito voltada para a questão do comando controle e, também, para a questão dos riscos que estamos correndo diante do PL 62/99 (Projeto de Lei Federal que afrouxa ainda mais o controle dos agrotóxicos). E aí me veio à mente a idéia de emplacar uma agenda positiva. Pensei comigo: vou começar no município de Viana, porque sou promotora lá.

E, graças a Deus, contei com uma adesão tanto da Câmara Municipal quanto da Prefeitura. Depois disso nós fomos atrás de parcerias com a Secretaria de Estado da Agricultura (Seag) , Ifes, Incaper e a Faculdade de Direito de Vitória (FDV), onde sou doudoranda.

Como é essa abordagem por parte das instituições de ensino e pesquisa?

O primeiro passo foi estabelecer um diagnóstico, no meio acadêmico, de quais as causas que levaram os produtores rurais daqui a se valerem tanto dos agrotóxicos. Essa política que, embora não seja uma política pública, está tão impregnada na nossa cultura, que também inclui o uso de fertilizantes sintéticos. Abordamos no âmbito do direito, da sociologia e da história.

Adotamos uma linha de pesquisa baseada na metodologia do materialismo histórico – dialético, exatamente porque a gente percebe a importância de uma compreensão do estado de coisas atual à luz do movimento histórico de luta que se colocou aí, desde muito tempo. Desde a nossa colonização. A começar pela questão da distribuição de terras em nosso país.

“Tentei fazer que esses atores políticos-institucionais se reunissem para que nós pudéssemos criar condições favoráveis a essa transição agroecológica”.

E o que esses estudos apontaram?

Que é necessário estabelecer um movimento que fizesse, agora, aquilo que antes tinha sido feito por todo crédito rural. Para ter acesso ao crédito rural, o produtor precisava se comprometer com uma pauta de utilização de agrotóxicos. Isso foi feito sob o argumento da necessidade de produção de alimentos, o que na verdade não se justificava. Ele serviu muito para justificar um movimento norte-americano da expansão de fronteiras e de corporações se apropriando da pauta da agricultura. E que fez com que a agricultura deixasse de ser agricultura e passasse a ser o agronegócio.

De uma cadeia de ciclo curto, que reunia agricultor e mercado consumidor, mudou-se para uma cadeia de ciclo longo, que agora tem agricultor, transportador, distribuidor, atacadista, varejista. Diante de todo esse cenário tentei fazer que esses atores políticos-institucionais se reunissem para que nós pudéssemos criar condições favoráveis a essa transição agroecológica.

Quais as dificuldades para um agricultor que opta pela produção orgânica?

São diversas. Primeiro, ele não tem nenhum incentivo. Segundo, precisa superar as questões do mercado consumidor que ele não sabe se conseguirá o escoamento da sua produção. Terceiro, verificar os óbices e dificuldades do ponto de vista da técnica para que ele possa usar produtos naturais ao invés de agrotóxicos. Quarto, uma capacitação em torno dessa nova proposta porque muitos dos agricultores não tem essa expertise. Então foi exatamente com fim de tentar superar todas essas dificuldades que passamos a aliançar esses parceiros no pacote de benefícios.

Além de ser o articulador inicial do Programa, o que mais o Ministério Público tem feito para auxiliar na implementação do mesmo?

O lançamento do nosso projeto chamado Pacto Ecológico Capixaba foi no dia 22 de fevereiro. Ele se inicia em Viana mas não tem o objetivo de se esgotar neste município. Ele tem por objetivo mobilizar e sensibilizar novos municípios para que encampem metodologia que vem sido estabelecida em Viana como um case. E aí o FECIAT entra como articulador para mobilização desses outros municípios.

Na reunião do dia 22 de fevereiro alguns agricultores relataram casos de problemas de saúde em suas famílias por conta dos agrotóxicos. O Ministério Público tem dados sobre os impactos à saúde dos produtores rurais de Viana – e até no restante do ES - por conta dos venenos e outras substâncias químicas usadas na produção?

Sobre as questões de saúde nós temos um diagnóstico muito pouco refinado. Estamos muito aquém de conseguirmos contabilizar todos os casos em que o agrotóxico resultou numa determinada doença. Primeiro, porque os profissionais de saúde tem um certo temor em vincular a causa de uma determinada doença à exposição do paciente ao agrotóxico. Segundo, porque quando ele faz isso, é nos casos de suicídio. Quando o sujeito se utiliza do agrotóxico para eliminar sua própria vida aí não tem alternativa.

“Estamos muito aquém de conseguirmos contabilizar todos os casos em que o agrotóxico resultou numa determinada doença”

Se é preciso uma investigação maior, ou até uma rotina da rede de saúde para mensurar os impactos dos agrotóxicos entre quem os manuseia, mais difícil ainda é mensurar os problemas de saúde para o consumidor final que come o alimento contaminado….

Exatamente. A começar pelo menos a perguntar se o usuário da rede de saúde é produtor rural e isso constar lá no prontuário dele. Nós tivemos aí nesses últimos anos, especialmente com o advento desse atual governo (Federal), a aprovação de mais de 500 ingredientes ativos que foram autorizados. E, por uma via transversa, nós identificamos que muito daquilo que vem sendo projetado por meio do PL 62/99, tem sido alcançado através de decreto do Executivo.

Isso nos preocupa. Por outro lado esse PL hoje, embora ele tenha sido aprovado no Câmara dos Deputados, está um pouco quieto no Senado. A gente tem uma expectativa de que uma mudança legislativa – dado o ano eleitoral em que estamos – que a coisa possa ter um outro enfrentamento. No Espírito Santo a gente já sabe que o monitoramento dos agrotóxicos até 2020 era feito de uma forma muito precária, pois os receiturários agronômicos eram físicos. Só do ano passado para cá passaram a ser digitais.

Então dá para centralizar os controles, não é?

Exatamente. Com essa digitalização a gente consegue estabelecer mecanismo de maior controle sobre o que está sendo prescrito. Isso é algo recentíssimo, na verdade foi uma conquista do FECIAT que foi a pressão sobre o Idaf (Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal). O Idaf também integra o Fórum, mas a gente entende que existiam questões políticas que faziam com que essa pauta não fosse prioritária. E no início de 2022 a gente começou a ter os resultados dos receituários agronômicos digitais.

Em Viana, como que em quase todo o ES, predomina a agricultura familiar e baixo uso de recursos tecnológicos. Isso não agrava a exposição desse produtor e seus familiares ao veneno?

Com certeza. Para agravar muitos ainda resistem ao uso de equipamento de proteção individual. Não bastasse isso, a gente tem o uso de pulverização aérea que não respeita os limites em relação à proximidade de centros urbanos, a questão dos ventos.

Por outro lado a gente tem uma grande oportunidade, pelo fato de sermos pequenas propriedades familiares, de fazer a transição da agricultura convencional para a agroecológica. Porque o nosso compromisso é com nosso mercado interno de consumo. Então a gente não está preocupado em viabilizar commodities. Isso faz com que qualquer proposta nesse sentido da agroecologia tenha maior propabilidade de lograr êxito.

Que a gente tenha um consumidor cada vez mais consciente da necessidade da importância da proteção da sua saúde, da sua família e do meio ambiente. E a gente tem que criar uma oportunidade para que esse agricultor tenha uma devida assistência técnica. E mais do que isso, que seja remunerado até com percentual maior – como é caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar – porque a gente sabe que ela é uma agricultura artesanal. Há uma dedicação muito exclusiva no trato da terra. Isso precisa ser valorizado.

Viana está oferecendo para esses agricultores que estão aderindo a produção orgânica compra a garantia da compra do produto para alimentação escolar…

Nós já tivemos inclusive adptação do cardápio da merenda escolar para compra e aquisição dos produtos da agricultura orgânica. Mas não temos ainda um arranjo produtor que atenda à demanda desse mercado consumidor.

De fato ainda não há produção orgânica em Viana. Mas há esses pouco mais de 50 produtores que se dispuseram a entrar no processo de certificação, que será paulatino…

Exatamente. Ele é um processo paulatino. Mas o fato de ele estar fazendo essa transição já vai permitir uma capacitação técnica e que ele possa se utilizar desse valor diferenciado pela compra do município.

E a realidade do consumidor capixaba que adquire produtos contaminados com agrotóxicos? O Ministério Público tem algum plano para, em parceria com outros órgãos e instituições, levantar informações sobre os impactos na saúde?

Está no nosso radar a identificação do consumidor. Mas como acabamos de dizer. Se há uma zona nebulosa em relação ao produtor, que dirá em relação ao consumidor. O que temos são estudos científicos de âmbito nacional que vão apontar para uma série de doenças que tem sido relacionadas ao uso de agrotóxico. Mas ainda não temos dados específicos em relação a população capixaba.

Mas as academias parceiras desse projeto (Ifes e FDV) podem estar fluindo pesquisas nessa direção, não é?

Sim. Penso que seria muito importante que tivéssemos acadêmicos da área de epidemiologia debruçados sobre esses aspectos que tangenciam mais a área da saúde do que do direito ou da técnica agrícola. Por isso o FECIAT é espaço aberto e nós já tivemos a participação da UVV, da UFES.

A última coisa que alcançamos, por exemplo, foi com o advento da portaria 888 do Ministério da Saúde que ampliou a obrigatoriedade de monitoramento de susbtâncias provenientes de agrotóxicos na água de abastecimento para efeito de potabilidade. Nós alcançamos junto à Vigilância Estadual ampliação dos municípios monitorados como também o compromisso de que o monitoramento recaia sobre todos os ingredientes que compõe a portaria.

Recentemente a imprensa nacional e também a estadual repercutiram levantamentos feitos pelas vigilâncias em saúde sobre a contaminação das águas de abastecimentos por produtos químicos. De Viana desce o rio Jucu que abastece um milhão de pessoas na Grande Vitória. O projeto da agroecologia também aborda essa frente?

Com certeza. Inclusive o que nós reparamos que não obstante a portaria nova estabeleça a responsabilidade das concessionárias de abastecimento público de água de informarem sobre a qualidade do líquido disponibilizado, você não consegue decifrar esses relatórios. Então você não sabe o que você está bebendo, você não sabe qual é a qualidade da água.

Eu chamei muito a atenção disso no Seminário Estadual de Mudanças Climáticas, quando palestrei ressaltando a importância de que essas concessionárias não só dêem a transparência em relação ao que está sendo monitorado, mas também que traduzam esses relatórios a termos acessíveis à população.

“Ainda há uma omissão total em relação aos agrotóxicos na água distribuída pelas concessionárias”

E o Fórum tem alguma atuação em relação a isso?

Nós enviamos um ofício para todas as concessionárias de abastecimento de água que atuam no estado para que eles participassem do Fórum. E o nosso objetivo agora é oficiar para que encaminhem o relatório de qualidade da água. Agora preciso esclarecer uma coisa. Esse último relatório que fez esse burburinho não dizia respeito a agrotóxico, mas de componentes radioativos. Em 2017 já havia e hoje ainda há uma omissão total em relação aos agrotóxicos na água distribuída pelas concessionárias.

O relatório de agrotóxicos, levantado pelo mesmo grupo de jornalistas (da Agência Pública) foi feito em 2017. E, da mesma forma, constatou o comprometimento da qualidade da água com agrotóxicos.

O monitoramento da contaminação da água por agrotóxicos e outros produtos químicos e o repasse dos resultados à saúde é obrigação legal das concessionárias. Por que não o fazem adequadamente?

Exatamente. Mas muitas vezes as concessionárias não passam, as vigilâncias em saúde não cobram. E mesmo quando os relatórios são passados, eles não são publicizados. No caso da Cesan, ela até publiciza. Mas o relatório é indecifrável. Um dos objetivos do Fórum é fazer com que as concessionárias que atuam no ES divulgem esses dados de forma clara. 

Como a senhora avialia a atuação, até o momento, da Prefeitura de Viana no projeto de fomento à agricultura sem agrotóxicos?

Está em andamento projeto pedagógico para os produtores rurais com duração de um ano e pouco. Além disso, já foi reformulado o cardápio escolar para aquisição do material orgânico. Estamos fechando com o Incaper e o Idaf agenda para visitação técnica dessas propriedades. Porque a nossa intenção é a de que o agricultor seja amparado o tempo inteiro. Estabelecer média de uma visita técnica a cada dois meses em cada propriedade, por parte da agricultura de Viana e do Incaper, para que esse produtor tenha assitência técnica adequada.

É claro que a formação traz toda uma série de experiências práticas também. Mas como não é na propriedade dele, então a gente quer que tenha essa visita técnica para que possa resolver problemas práticos que acontecem na lavoura dele.

Quais são os itens do cardápio escolar que Viana trará da agricultura sem agrotóxico?

De cór me lembro da banana, que inclusive também será comprada em Cariacica, que é referência nesse tipo de cultivo. Em Viana, podemos trabalhar com jaca, mel, por exemplo.

Além da assistência técnica e garantia da compra da produção, o projeto contempla quais outros incentivos?

Estão sendo disponibilizadas horas-máquinas. E acho que agora é fazer a coisa acontecer. Porque o produtor rural tem lá seus desafios, que não são poucos. E a gente precisa também fazer o diagnóstico do mercado consumidor em geral. Hoje no município de Viana, tanto a rede varejista quanto atacadista, compraria todo o produto orgânico que tivesse. Temos um consumidor hoje muito mais consciente. Isso é importante porque ajuda o produtor a fazer uma revisão de seu modo de produção. E por último, até quem trabalha com a perspectiva de comodities precisa pensar em produção mais limpa. Na Europa, por exemplo, se exige controle muito maior de agrotóxicos.

Mas a conjuntura política atual do país aponta na direção contrária, com valorização das grandes propriedades monocultoras de soja, milho e gado, com intenso uso de agrotóxicos, antibióticos e fertilizantes químicos…

Sim, os estímulos são totalmente contrários. A agricultura orgânica, que está dentro do cenário da agroecologia, ela é muito mais do que a produção stricto sensu (no sentido estrito). Ela é um olhar para uma questão de uma forma muito mais macro. E esse é um dos grandes gargalos, desafios do Brasil, onde a gente assiste diariamente um êxodo rural, porque o produtor rural precisa de mais assistência.

Viana também falou de cessão de mudas e insumos para os que aderirem, o Incaper inclusive já toca no município uma ação com resíduos da produção de café que gera adubo orgânico…

Tem sim. Um dos benefícios também é destinar para esses produtores biodigestores. Nós vamos assinar um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com a Cesan no valor de cerca de R$ 900 mil. É uma compensação por força dos impactos que serão gerados com a construção da barragem no rio Jucu.

“A agroecologia está na linha da segurança alimentar”

A senhora também tem trabalhado, tanto como coordenadora do Feciat como Promotora de Justiça, na elaboração de leis locais que fomentem a produção sem agrotóxicos…

Isso. E uma inspiração é a lei aprovada no município de Florianópolis ( em Santa Catarina) que estabelece uma zona livre do uso de agrotóxico em parte do território. Então fiz essa sugestão para a Câmara Municipal de Viana, o presidente da Câmara está se debruçando sobre este assunto junto com a procuradora da casa, a Doutora Luana, para que a gente possa avançar. É claro que um projeto desses também precisa ser discutido com a sociedade civil. De nada adianta uma legislação se ela não for para ser implantada. E já conseguimos que a Câmara aprovasse a lei que disciplina o Plano Municipal de Agroecologia. Porque o que é política pública não é o uso de agrotóxico. É a agroecologia. É ela quem está na linha da segurança alimentar.

 

imagem de
Bruno Lyra
Jornalista especializado em coberturas ambientais e professor de geografia
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