Entre negacionismos e ataques à ciência
Saber como negacionistas e cientistas elaboram ou chegam às suas proposições é muito importante.
A ciência é filha da modernidade. Ela faz parte de uma série de transformações que ocorreram no mundo ocidental a partir do século XVI e, ao longo desse tempo, vem se estruturando, se repensando e se desenvolvendo de forma intensa e rápida. Surge assentada sobre as bases positivistas, segundo as quais a ciência deveria ser neutra, ou seja, livre da interferência dos valores dos cientistas (o uso no masculino aqui é proposital). Em outros termos, esse modelo de ciência que surge defende a premissa segundo a qual valores políticos, ideológicos ou quaisquer outros não deveriam interferir no processo de produção do conhecimento; processo esse que deveria ser caracterizado pela neutralidade e pela objetividade.
Todavia, o tempo mostrou que a colocação em prática desses princípios não era tão simples assim. Para muitos, eram impossíveis de serem postos em prática dado que a ciência é uma atividade humana e como tal, impregnada pelas visões de mundo que as pessoas carregam. Cientistas são pessoas e pessoas só existem localizadas no tempo e no espaço. São seres históricos e culturais. A nossa localização espaço-temporal exerce grande influência no tipo de gente que somos e no modo como compreendemos a vida e a ela damos significado, sendo, portanto, impossível o exercício de uma prática científica isenta das nossas referências de mundo. Mas não é disso que gostaríamos de falar hoje. Trata-se de um assunto complexo e que exigiria duas coisas que não temos no momento: tempo e espaço.
Vivemos dias de negacionismos de variados matizes. Tempos nos quais a mera opinião, aqui pensada como aquela que não resulta do exercício do pensamento ou da reflexão, passou a ter vez e voz na cena política e social, produzindo resultados não só desanimadores para quem estuda e pesquisa, mas também perigosos para a sociedade. O presidente do país, por exemplo, pode ser citado como uma das figuras mais destacadas nesse processo de emitir opiniões que não resultam de pensamento, mas dos meros achismos, todos vazios de sustentação em termos de evidências.
Nas redes sociais circulam as mais diversas opiniões que vão desde a negação da eficácia das vacinas até o questionamento de um dos mais “consolidados” consensos da humanidade, a saber, aquele que a afirma que a Terra é redonda. Todas essas opiniões que circulam têm em comum dois elementos: de um lado, a superficialidade, e por outro, a negação das afirmações científicas. E isso não apenas nas ciências naturais, mas também no campo das ciências sociais. Campos científicos consolidados, mas que vêm tendo a sua pertinência e importância colocadas em xeque por grupos negacionistas espalhados pelo mundo todo.
Do lado das ciências naturais, além dos dois eventos citados acima, temos também a negação de que estaríamos vivendo um aquecimento global decorrente da ação deletéria do ser humano na natureza. Negação do desmatamento descontrolado das florestas, com a consequente extinção de espécies da flora e da fauna. Nas ciências sociais, os ataques mais evidentes têm vários alvos, dos quais destacamos: a negação da escravidão e das dívidas históricas da sociedade brasileira; a negação de que houve uma ditadura entre 1964 e 1985; e, por fim, as investidas contra aos chamados Estudos de Gênero, um campo de pesquisa consolidado há anos, presente em departamentos e programas de pós-graduação de praticamente todas as universidades e atravessado por uma pluralidade de perspectivas que passam pela sociologia, pela antropologia, pela história, pela psicologia etc. O ataque assumiu a forma de um embuste linguístico conhecido como “ideologia de gênero”, um termo desqualificador criado para explicar tudo e não dizer nada. Pergunte a qualquer pessoa que usa frequentemente esse termo sobre o que ela entende por esse ‘conceito’? É quase certo que não teremos uma resposta coerente e sustentada em conhecimentos sobre o que o campo dos Estudos de Gênero investiga.
Uso a palavra ataque por se tratar de movimentos que visam não a abertura de um diálogo ou de um debate, mas o policiamento, a perseguição, o cerceamento e o silenciamento de professores/as, pesquisadores/as e estudantes. No entanto, a despeito de todas essas colocações, parece-me que falta a boa parte dos opositores e negacionistas, pelo menos esses que encontramos nos almoços familiares e nos espaços de trabalho, uma compreensão mais ampla acerca das complexidades da realidade, ou seja, a não apreensão de que o mundo existe para além das suas concepções e dos seus entendimentos sobre a vida. Tais posicionamentos colocam-nos num terreno de indagação ética para o qual devemos pensar respostas também éticas: se a realidade é caótica, confusa, complexa e inesgotável, como iremos lidar com isso? De que maneira as nossas concepções de mundo interagem com outras concepções? Aqui a dimensão ética marca presença pois implica na forma como iremos nos relacionar com os outros, sobretudo com aqueles/as que são radicalmente diferentes de nós.
Mas há outros elementos que precisam ser considerados. Há muito tempo, a ciência vem sendo pautada pelo cientificismo, a crença segundo a qual o único conhecimento válido é o científico. Trata-se também de um processo de simplificação do mundo e da vida, pra não dizer de uma atitude arrogante. Sabemos que a ciência pode nos ajudar e nos dar muitas respostas, mas há ainda uma quantidade imensa de questões para as quais não obtivemos um entendimento adequado. A ciência não pode nos dar respostas adequadas para as nossas interrogações existenciais, por exemplo. Nesse caso, resta-nos buscar em outros sistemas de explicação amparos para as nossas dores e dilemas.
Outro problema diz respeito ao modo como a ciência comparece em nossas mentes, a forma como ela povoa nosso imaginário. Muitas vezes, a imagem que se tem da ciência é a de um laboratório ocupado por um homem idoso, branco e isolado do mundo. Nada mais irreal. Essas representações apagam a pluralidade dos modos de ser que a ciência apresenta. Nesse sentido, precisamos repensar as formas como a ciência em suas variadas versões vem sendo ensinada nas escolas e representada na mídia. Sabemos muito pouco sobre como os/as cientistas trabalham. Nada sabemos sobre as “comunidades de pensamento” ou sobre os grupos de pesquisas espalhados pelo mundo, nos quais os/as pesquisadores/as trocam informações sobre um dado problema que investigam e os desafios que enfrentam na construção de consensos.
A pandemia da covid-19 colocou a ciência na ordem do dia, revelando as suas fragilidades e dificuldades. Temos visto avanços, certamente, mas muitas dúvidas ainda pairam no ar. De certo modo, o que nos é ensinado diz respeito apenas aos produtos da ciência e nada sobre os seus processos. É como se um dado avanço simplesmente tivesse surgido do nada, como num toque de mágica. O trabalho da ciência é duro, árduo, demanda tempo para estudo e pesquisa e também muito investimento financeiro. No entanto, muitos/as talvez nunca tenham parado para pensar nisso. Pensamos nos/as cientistas como seres hiper inteligentes, pessoas dotadas de um conhecimento muito acima da média. Tomamos medicamentos diariamente e nunca paramos para pensar como aquela tecnologia médico-farmacêutica chegou até nós. Sequer conseguimos imaginar que para que ela chegasse até nossas mãos foram necessários anos e mais anos de pesquisa, dedicação, trabalho, troca de informações, erros, acertos, mudanças de protocolos, alterações nos experimentos, horas intermináveis de leituras etc. Enfim, desconhecemos quase que completamente a rede de sustentação da ciência, rede essa que envolve cientistas, artefatos tecnológicos, teorias, teses, argumentos e por ai vai. E o negacionismo? O que tem a nos oferecer nesse sentido? Quais são as redes de sustentação das proposições negacionistas? Onde se aparam as argumentações feitas por pessoas negacionistas? Na ciência tudo é submetido ao crivo dos pares. Um experimento tem seus resultados apresentado a outros cientistas que deverão avaliar a sua veracidade ou não. Aliás, o valor verdade é central para a ciência, seja ela uma ciência natural ou social. Todas primam pela veracidade do que se apresenta em termos de percurso metodológico e resultados. Uma mentira na ciência tem pernas muito curtas, pois tende a ser rapidamente desmascarada. A submissão das proposições científicas ao escrutínio do coletivo constitui-se numa importante conquista, dado que nos ajuda a evitar o espíritos aventureiros e irresponsáveis em nossas fileiras.
No entanto, como tudo na vida é permeado pelo político (em sua acepção ampla), as ‘verdades’ também são objetos de disputa entre os diversos sistemas de explicação do mundo. Nesse caso, devemos observar as redes de sustentação das afirmações da ciência em confronto com as redes de outros modelos ou sistemas explicativos. As verdades são sempre provisórias. Por isso, saber como negacionistas e cientistas elaboram ou chegam às suas proposições é muito importante. A educação científica torna-se central nesse processo. Infelizmente o analfabetismo também tem sua dimensão científica, dado que a maioria de nós ainda não se encontra devidamente alfabetizada em termos científicos. A alfabetização científica não responde a tudo, mas pode nos ajudar na contraposição aos argumentos negacionistas, na participação na vida comunitária e no processo de tomada de decisões. Ela nos ajuda a perceber que cientistas não são heróis. São seres humanos cuja tarefa é se dedicar ao processo de produção de conhecimento, viabilizando condições que melhorem a vida das demais pessoas. É claro que nem tudo na ciência são flores. Tivemos erros, deslizes, justificativas do racismo etc. Daí a importância de pensarmos sempre na ciência no contexto de uma ética da responsabilidade pelo outro, pela vida e pelo mundo. Mas, para isso são necessários alfabetização científica e enfrentamento dos elementos que tocam em interesses nem sempre bonitos que dominam parte da vida social e política.
Como nos afirmam Lima et al (2019) é fundamental compreendermos a natureza da ciência. É importante também conhecermos a sua rede de sustentação. Tenhamos sempre em mente que o campo científico é diverso e permeado por interesses plurais. Não há um método científico universal, mas diferentes formas de pesquisar que variam conforme os campos do conhecimento, os objetos de análise, os objetivos dos/as pesquisadores/as. Da Biologia, passando pela Química até chegarmos na Antropologia ou na Arqueologia, o caminho é longo, mas todas elas assumem o compromisso com a veracidade de suas informações e com a construção de suas “verdades” provisórias, mas sempre conectadas com as evidências – coisas com as quais o negacionismo parece não se importar. Em última instância, pense sempre no quão presente e importante tem sido a ciência em sua vida. Já é um bom começo no caminho do pensamento.