Ética e coronavírus
Somos seres marcados pela fragilidade e pela precariedade e é exatamente porque somos assim constituídos que necessitamos da ética e da construção de relações mais solidárias uns com os outros.
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde anunciou que a doença causada pelo novo coronavírus havia se transformado numa pandemia, ou seja, a doença havia alcançado escala global, afetando todos os países do mundo. De lá pra cá, temos visto o aumento do número de mortos em diversos lugares, mas de modo especial no Brasil, que se transformou no epicentro da pandemia.
A forma como o país tem lidado com a pandemia do novo coronavírus tem sido apontada como o grande problema, posto que vem custando a perda de vidas que, sob certos aspectos, poderiam ter sido evitadas. Informações e ações de enfrentamento são desencontradas. Falta um planejamento central e coordenado que seja capaz de pautar e respaldar as ações de prefeitos, governadores e consultorias científicas. Mudanças sucessivas na direção do Ministério da Saúde também têm contribuído para o agravamento da situação que, diga-se de passagem, tem sido minimizada pelo presidente da República com o seu negacionismo.
A pandemia colocou para os diversos sistemas de saúde no mundo todo uma série de desafios até então pouco imaginados. Sistemas que trabalham para além de seus limites e com equipes médicas e de enfermagem operando na fronteira da exaustão. Fornecedores de insumos hospitalares não conseguem dar conta da demanda, deixando o sistema à beira do colapso, com pessoas morrendo em decorrência da falta de recursos de suporte necessários para a manutenção de suas vidas.
Por outro lado, surgem os dilemas – muitas vezes falsos – acerca de quem vem primeiro na nossa escala de prioridades. Um exemplo é aquele que coloca em situação de confronto a economia e a saúde, vistas como instâncias separadas. Outro campo de conflito tem sido a batalha travada entre algumas igrejas, prefeituras e governadores em torno do “abre/não abre” das casas de culto. De um lado, líderes religiosos (aliados a algumas forças políticas) defendem a relevância da abertura de suas igrejas no contexto pandêmico. De outro, governadores, prefeitos e cientistas que defendem o fechamento desses espaços, na medida em que se constituem pontos de aglomeração e disseminação do vírus.
Em meio a tudo isso uma questão nos parece central, mas que não tem sido devidamente considerada: a questão ética - um conceito polêmico e para o qual são dados variados sentidos. No entanto, aqui a ética comparece de uma forma precisa. Nosso primeiro ponto: não existe ética do “eu sozinho”. Essa conversa do “cada um tem a sua ética” soa estranho. A ética tem como pano de fundo, como ponto de reflexão, a questão da convivência – ou seja, do con-viver, do viver junto com. É o estar junto com outras pessoas que faz com que a ética emerja, que faz com que ela apareça e se torne necessária. A ética surge sempre como uma demanda que nos vem de fora, isto é, como uma reivindicação que chega até nós através de uma outra pessoa. É nesse encontro que a ética entra em cena. Os encontros e as relações suscitam dilemas, interrogações, desafios, necessidade de tomada de decisões. Cabe à ética nos ajudar a desenhar o melhor caminho a ser seguido, o que é feito com muito diálogo e reflexão. Ela não surge do nada nas nossas cabeças, mas resulta dos dilemas que são criados nos embates cotidianos que temos com as outras pessoas e até mesmo com os seres não humanos. Isso porque não estamos sozinhos. Habitamos o mundo e compartilhamos o planeta com outras pessoas e com outras espécies.
Para além da questão de como viver bem, a ética nos coloca um desafio ainda maior: como conviver bem com os outros? Em outras palavras, ela nos indaga sobre a forma como gostaríamos de construir nossas relações com as demais pessoas. Ela nos interroga sobre quais responsabilidades temos para com aqueles que habitam o mundo junto conosco e sobre os nossos compromissos com as pessoas que ainda irão nascer. A ética nos pergunta sobre a forma como estamos comprometidos com o mundo (natural e sociocultural).
Um outro dado digno de nota é o fato de nossa interdependência. Se não estamos sozinhos, tampouco somos autossuficientes. Para sobreviver, necessitamos de uma rede de apoio social, formada por gente conhecida e desconhecida, pessoas que de diversas formas nos ajudam ao longo de nossos dias. Estamos profundamente ligados uns aos outros e isso de maneiras perceptíveis e imperceptíveis. O sujeito autossuficiente é uma ficção que tem nos feito muito mal. Estamos ligados não apenas porque necessitamos uns dos outros, mas porque todos estamos igualmente sujeitos ao adoecimento e condenados ao desaparecimento. Em outros termos, somos seres marcados pela fragilidade e pela precariedade e é exatamente porque somos assim constituídos que necessitamos da ética e da construção de relações mais solidárias uns com os outros.
No momento mais crítico da pandemia não faz nenhum sentido a disputa pela abertura de igrejas ou do comércio em geral. A pandemia escancara nossas fragilidades e nossas vulnerabilidades ao vírus. Somos ou podemos nos tornar agentes de contaminação, de contágio. Podemos carregar a morte na invisibilidade de um vírus para dentro de nossas casas ou locais de trabalho, sem que saibamos. Diante disso, todo cuidado é pouco e seria mais interessante pensarmos formas mais solidárias de conviver (alvo da ética) que colaborem não apenas para o apaziguamento da pandemia, como também para a proteção uns dos outros. O momento demanda ações de cuidado: cuidado de si e cuidado do outro. Demanda a formulação de políticas públicas que sejam capazes de criar condições para que os mais pobres possam enfrentar a pandemia sem que se vejam obrigados a sair de casa todos os dias e se colocarem em situação de exposição ainda maior ao vírus. Não se iluda: as maiores vítimas do coronavírus têm sido os mais pobres e isso não é um mero acaso do destino ou uma fatalidade como muitas vezes querem nos fazer crer.
Lamentavelmente as ações do governo federal e de alguns governadores e prefeitos têm sido centradas na salvação da economia – como se fosse possível pensar uma economia sem corpos vivos e saudáveis para trabalhar e produzir. Não! Não existe economia sem seres humanos vivos. De modo particular, as (des)medidas adotadas pelo governo federal vêm amparadas numa (ir)racionalidade neoliberal para a qual todos os sistemas de amparo social – incluindo a concessão de auxílio emergencial decente e sistema público de saúde - devem ser desmontados em favor do mercado, alçado à posição de medida suprema de todas as coisas, inclusive de nossas vidas - cabendo a cada um cuidar de si mesmo como se nada mais importasse.
Recentemente o prefeito de uma importante cidade brasileira fez o seguinte pedido num de seus pronunciamentos: “Contribua com sua família, sua cidade, sua vida, para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre". A fala desse prefeito aponta para o fato de que estamos diante de uma lógica macabra e perversa que divide as pessoas entre aquelas que importam e aquelas que nada ou pouco valem. Nesse último caso, cabe o sacrifício/morte em nome da economia. E isso em favor de quem? Em prejuízo de quem? Quem deve sair de casa e pegar um ônibus lotado para salvar a economia?
É diante de um quadro assim tão desalentador que a ética se faz mais do que urgente. É ela que nos pergunta como queremos viver e conviver. É ela que nos interroga sobre se se deve hierarquizar e dividir as vidas entre as que valem e as que não importam. Precisamos repensar o que queremos de nossas vidas e em que tipo de sociedade queremos habitar. Não há uma única pessoa que possa se dizer imune ao vírus ou à morte. O que existe é gente que se sente imune à precariedade, que se sente vacinada contra a possibilidade de sair de casa e morrer, por qualquer motivo, na rua e nunca mais se encontrar com os seus queridos. O que existe é gente que do alto da arrogância humana sente-se imbatível e fora do raio de ataque do vírus ou da possibilidade de vir a morrer por qualquer outro motivo. Num momento como esse, colocar a nossa fragilidade no centro das nossas preocupações políticas e econômicas é muito importante. Uma fragilidade que para sobreviver necessidade se juntar a outras fragilidades, numa espécie de acordo construído sobre uma ética do bem comum e da extensão do direito de viver a todas as pessoas.
Não nos esqueçamos: a ética quer de nós muitas coisas, mas uma delas é particularmente importante. Ela quer saber como faremos para conviver bem com os outros. E isso implica pensar nas nossas vulnerabilidades, na nossa interdependência e na atenção que devemos ter com os nossos iguais e com aqueles que não nos são tão semelhantes assim.
Referências:
BUTLER, Judith. Vida precária. Os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
OMS afirmas que Covid-19 é agora caracterizada como pandemia. OPAS – Organização Pan-Americana da Saúde, 2020. Disponível em https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812. Acesso em 04 de abril de 2021.
CONTRIBUA com a sua vida para que a gente salve a economia’, diz prefeito. Jornal O Estado de Minas, 25 de fevereiro de 2021. Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2021/02/25/interna_nacional,1241134/contribua-com-a-sua-vida-para-que-a-gente-salve-a-economia-diz-prefeito.shtml. Acesso em 04 de abril de 2021.