Ética e moral a partir de um diálogo com a parábola do bom samaritano
As atitudes morais implicam sempre no cumprimento de determinados preceitos e, nesse sentido, cabe à ética avaliar a justeza ou não dessas regras do proceder
Ao longo do tempo a parábola do bom samaritano foi se constituindo como um dos relatos mais belos e profundos do Cristianismo. A sua riqueza se expressa, sobretudo, pela quantidade de leituras, interpretações e apropriações que ele nos possibilita, permitindo-nos pensar em vários aspectos que marcam a nossa condição de seres humanos.
Penso nesse texto a partir de uma perspectiva ética. Mais do que tratar de uma questão de ordem espiritual, entendo que esse relato nos confronta com uma das mais importantes dimensões da eticidade: a forma como nos relacionamos com o outro. Por conta disso, gostaria de fazer algumas distinções conceituais que me ajudarão na construção do meu argumento.
Segundo Émile Durkheim, um dos pais fundadores do pensamento social moderno, a moral consiste num “(...) sistema de normas de conduta que prescrevem como o sujeito deve conduzir-se em determinadas circunstâncias.” Ou seja, a moral é um conjunto de regras que dizem como devemos nos portar em sociedade. Elas estabelecem nossas obrigações e aplicam-se a todos os membros de uma determinada comunidade ou cultura.
A ética, por sua vez, implica numa reflexão que seja capaz de problematizar o significado desses valores morais. Isto é, as regras morais são postas sob o escrutínio da avaliação ética, de forma que uma contradição entre ambas é sempre possível. Em linhas gerais, a moral nos fornece respostas prontas, diferentemente da ética, para a qual os dilemas são diversos e demandam respostas também diferenciadas, não sendo, portanto, compatível com a atitude ética as posturas engessadas e construídas sobre verdades absolutas e inquestionáveis. Não há espaço para a ética nos ambientes dominados por verdades incontestáveis.
Atitudes morais nem sempre são atitudes éticas. Na maioria das vezes, as atitudes morais podem beirar o moralismo vazio e hipócrita que tanto nos assombra. As atitudes morais implicam sempre no cumprimento de determinados preceitos e, nesse sentido, cabe à ética avaliar a justeza ou não dessas regras do proceder. Evidentemente essa é apenas uma perspectiva de interpretação desse campo e é com ela que pretendo trabalhar nesse texto.
Como é de conhecimento de muitas pessoas, samaritanos e judeus não se falavam. Por razões históricas, ambos os povos haviam desenvolvido extrema hostilidade mútua. Havia uma verdadeira etiqueta (ética pequena, a ética do cotidiano) a pautar as formas como um judeu e um samaritano deveriam se comportar e reagir, caso se encontrassem. Eram regras sociais e morais rígidas para as quais a infração não seria facilmente perdoada. É nesse ponto que nos encontramos diante do dilema ético, aquele que exige uma tomada de posição, uma escolha entre alternativas possíveis ou quando somos colocados diante dos preceitos morais sedimentados há séculos e que determinam como devemos agir em todas as relações sociais.
No diálogo entre Jesus e o perito na lei judaica, uma primeira questão aparece: “Quem é o meu próximo?” Essa é uma pergunta que, certamente, interessa ao campo da ética. É também uma indagação que necessita ser posta sobre a mesa de nossas conversações, sobretudo, em tempos difíceis nos quais os discursos de ódio têm ganhado espaço mesmo entre pessoas que se nomeiam e se reconhecem a partir de um terreno religioso, em especial do cristão.
Jesus, sabiamente, introduz o relato trazendo para a cena as seguintes personagens: i) um homem que ia de Jerusalém para Jericó; ii) os salteadores; iii) um sacerdote, um homem piedoso e profundo conhecedor dos oráculos eternos; iv) um levita e; v) um samaritano em viagem.
Como resultado de um ato violento, aquele que ia de Jerusalém para Jericó fica quase morto à beira da estrada. Todos os passantes vêm-se diante de um dilema ético: de quem se trata? O que fazer? A ética surge no momento em que tais questionamentos entram em cena e exigem uma tomada de decisão. O perguntar sobre o que fazer já é, em si mesmo, um desafio que nos coloca no terreno da atitude ética. O quase-morto coloca para os que passam uma demanda, uma indagação, uma dúvida. Enquanto sujeitos de escolhas e de vontade, cabe a cada um dos passantes responder à demanda que chega de fora, uma demanda colocada por esse que se encontra ferido e à beira da morte.
Para responder àquele que demanda, sacerdote e levita acionam seus sistemas morais, seus valores mais preciosos. A resposta ao ferido – no caso, a negação em prestar-lhe ajuda - não nasce do acaso. Ela surge sustentada num sistema de crenças e valores que pauta o modo como essas pessoas atuam na vida social e pessoal. De repente poderia se tratar de algum mandamento da lei que impedia o contato com pessoas mortas. Certamente, a decisão de passar para o outro lado da estrada decorre da forma como ambos operam os padrões morais de sua época e de sua experiência religiosa. De um ponto de vista moral, ou seja, do cumprimento estrito de preceitos de conduta não há muito o que dizer sobre esses homens. Parecem bons cidadãos, bons cumpridores de seus deveres.
Todavia, ao entrar em cena o samaritano, uma coisa chama a nossa atenção: a despeito de todas as regras morais que pautavam a forma como ele deveria se relacionar ou não se relacionar com um judeu, o samaritano, que era tido como a representação da abjeção, um corpo considerado menos humano, menos digno de respeito e de consideração, ao ver-se confrontado com uma demanda ética posta pelo quase-morto – o que fazer? – avalia a justeza de todos os sistemas morais que até então presidiam suas relações com o diverso, com o diferente, com o extremo – e conclui pela necessidade de ajuda, de apoio, de solidariedade, de compaixão e de cuidado – elementos fundamentais para a construção de uma perspectiva ética de mundo. Ao que parece, por alguma razão o samaritano sabia trata-se de um judeu quase morto, mas entre pesos e contrapesos, mesmo diante de regras morais históricas que impunham o afastamento e a evitação, decide-se pelo não causar dano, pela identificação com a dor daquele à beira da estrada, pelo acolhimento de seu sofrimento e pelo reconhecimento da precariedade que perpassava a existência de ambos.
Em outros termos, a tomada de posição ética por parte do samaritano representou o colocar-se contra as normas morais que regulavam a sua vida em sociedade; regras herdadas do passado e compartilhadas com a sua comunidade. Nesse sentido, podemos dizer que, muitas vezes, a ética implica em assumir uma atitude em desacordo com aquilo que fomos ensinados a fazer; em colocarmos sob tensão as regras cuja pertinência jamais havia sido objeto de nossas indagações e questionamentos.
O relato bíblico prima pela radicalidade, no sentido de que vai à raiz dos nossos preconceitos e da forma como classificamos as demais pessoas. Trata-se de um texto que coloca em questão as formas de enquadramento que utilizamos para decidir quem merece e quem não merece ser reconhecido como pessoa, como cidadão, como gente. Importante lembrar que ao discorrer sobre a forma como nos relacionamos e as demandas éticas que esses relacionamentos nos impõem, a Bíblia em várias passagens usa a figura do órfão, da viúva e do estrangeiro como representação daqueles sobre os quais recaem as maiores parcelas de vulnerabilidade e que carecem de uma maior cota do amparo comunitário.
Mas, nesse contexto, o que podemos dizer sobre o estrangeiro? O estrangeiro é o estranho, o diferente, aquele que vem de outros lugares, de outras paragens, de universos sociais diferentes dos nossos. No entanto, em nenhum momento fica a ideia de que não temos responsabilidades para com esse estranho, para com esse outro radicalmente diferente de “nós”. Pelo contrário, do ponto de vista de uma ética assentada numa perspectiva cristã, aumentam ainda mais as nossas responsabilidades e o nosso dever de hospitalidade para com esses indivíduos procedentes de mundo morais, culturais e sociais diferentes daqueles com os quais estamos familiarizados – lembrando-nos também que todos somos estranhos e estrangeiros em algum lugar ou em alguma medida na vida.
Em tempos de disseminação de ódios e de discursos que primam pela negação do direito de viver a certas populações tidas como descartáveis, torna-se mais do que nunca necessário retomarmos o sentido ético presente nas nossas experiências religiosas e nos relatos escritos sobre os quais elas encontram-se construídas. Caso nos recusemos a isso, corremos o risco de reproduzirmos formas de relacionamento que atuem no sentido de estimular ainda mais a exclusão desse diferente do campo da experiência humana e do direito de viver. O relato do samaritano deixa-nos a impressão de que para a pergunta “quem é o meu próximo” não cabe uma resposta limitada e circunscrita àqueles que são os nossos iguais. O tempo exige posicionamentos éticos e a ampliação da nossa concepção de “próximo”, não cabendo condutas moralistas que muitas vezes negam ao outro o reconhecimento como ser humano pleno.
REFERÊNCIAS: BÍBLIA sagrada.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 2015.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2000.
MOREIRA, Gilvander Luís. Contexto histórico da parábola do bom samaritano (Lc. 10, 25-37). In: Adital – Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br. Acesso em 10 de abril de 2021.
QUINTANEIRO, Tânia; BARBOSA, Maria L. de O; OLIVEIRA, Márcia G. M de. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim, Weber. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.