Sobre a mais barata das carnes
Alguns viventes são tidos como humanos plenos, outros são vistos como seres menos humanos, são vidas matáveis, corpos que não são dignos de viver ou de habitar o mundo.
A notícia de que na segunda-feira, 26 de abril de 2020, dois rapazes, tio e sobrinho, ambos negros, teriam sido detidos por seguranças de uma das lojas da rede Atacadão Atakarejo, na cidade de Salvador/BA, por estarem furtando carne, mostrou-nos mais uma vez a força do racismo que permeia a sociedade brasileira.
Segundo o que foi noticiado pelo jornal espanhol El País, já detidos e rendidos pelos seguranças e pelo gerente da loja, os rapazes teriam sido entregues por eles a um grupo de traficantes da região. Horas depois, o desfecho trágico: tio e sobrinho haviam sido torturados e assassinados pelos traficantes que agiam no entorno do hipermercado. Ao invés de acionarem as forças policiais, os responsáveis pela loja optaram pelo caminho mais brutal com o fim de executar seu intento: “cancelar” aqueles dois CPFs. Sim, apagar aquelas duas existências! Ou será que gerente e seguranças esperavam outro desenlace para a forma como procederam nesse caso macabro?
Não nos cabe aqui fazer a defesa do furto. Todos sabemos tratar-se de um ato reprovado e reprovável pela sociedade. No caso em tela, há uma série de componentes que precisam ser considerados por cada um nós e que são bem descritos na matéria do El País. Mas deixaremos para o leitor e à leitora a responsabilidade em avaliar os meandros do caso por si mesmos. Todavia, diante das ocorrências de furto e de tantas outras, devemos reconhecer a existência das instituições sociais cuja função é proceder à aplicação da lei, instaurar inquérito e realizar todos os trâmites necessários para elucidar o que aconteceu e, se for o caso, que os infratores possam ser devida e legalmente julgados. Além disso, uma regrinha básica que devemos sempre ter como referência nos diz que as penas sempre devem ser proporcionais ao delito. Por isso perguntamos: O furto de alguns quilos de carne justifica o extermínio de duas pessoas? É uma justificativa plausível para que rostos sejam desfigurados? Há algum encadeamento lógico entre o furto de uns poucos quilos de carne e a condenação à morte de quem quer que seja que tenha cometido a infração?
Os seguranças e o gerente da loja do Atakarejo pensaram de forma diferente do que vem sendo preconizado pelos sistemas mais modernos de gerenciamento das penalidades e das infrações. Não se sabe por qual razão, mas ambos acharam que tinham o direito de julgar e decretar como punição aos dois rapazes a mais infame das penas - a pena de morte - sem qualquer chance de defesa, num ato brutal e covarde. Isso mesmo: o gerente e os seguranças do hipermercado acharam-se no direito de condenar duas pessoas à morte!
Uma vez rendidos, que necessidade havia para se proceder dessa forma tão violenta e desumana? Quais elementos motivaram essa tomada de atitude, senão o puro ódio, alimentado, quem sabe, pelo racismo que permeia as nossas práticas sociais? Desencanto com o aparato institucional? Pode ser! Mas em que lugar alguém encontra respaldo ético para condenar uma outra pessoa ao desaparecimento simplesmente por não acreditar nos trâmites institucionais? Quem tem o direito de dizer quem vive e quem morre? Volto a repetir: quem tem o direito de decidir quem deve viver e quem deve morrer numa tal situação? Numa hora dessas é importante que gerente e seguranças, bem como cada um de nós, tenhamos em mente quais são as nossas motivações, os nossos ímpetos por justiça ou por vingança, assim como a forma como nos relacionamos com a institucionalidade que pauta a nossa vida em sociedade.
O fato de tratar-se de pessoas pretas detidas por supostamente terem furtado carne, perpetua e reproduz a lógica de punições e castigos devotados aos negros pela empresa colonial e escravocrata que, por pelo menos 350 anos, dominou o país. Temos 521 anos de história pós-intrusão colonial. Nesses pouco mais de cinco séculos, apenas 133 anos foram vividos sob um regime de abolição legal da escravidão, descontados os 30 primeiros anos após a conquista do território pelos portugueses e nos quais a instalação do regime e da gestão colonial não haviam se efetivado. Portanto, a história do Brasil é a história de uma sociedade marcadamente escravocrata. Ao longo de todos esses séculos, a escravidão foi a instituição mais importante do Brasil, o sustentáculo de todo o aparato de produção e extração de riquezas destinado ao mercado externo. Foi ela quem estruturou todo o nosso padrão de sociabilidade, a forma como ricos, pobres e escravizados se relacionavam e interagiam uns com os outros. Foi ela quem deu o tom para o funcionamento das nossas instituições, em especial as manicomiais e as de justiça e segurança pública. Seus reflexos ainda se fazem sentir e se reproduzem no nosso dia a dia por meio de ações como essa que ocorreu em Salvador, uma das cidades mais negras do Brasil, mas que, nem por isso, encontra-se livre da sanha racista e seu ímpeto em classificar as pessoas em dois grupos: os humanos e os não plenamente humanos.
Digo isso porque é central que se saiba que a dicotomia que estrutura o racismo é essa segunda a qual alguns viventes são tidos como humanos plenos, com potencial de habitar plenamente o mundo, seres dotados de uma vida meritória; ao passo que outros são vistos como seres menos humanos, abjetos, vidas espectrais, meio vivas e meio mortas, para as quais não se devota lamento e, tampouco, qualquer forma de comoção em caso de perda/morte. São vidas matáveis, corpos que não são dignos de viver ou de habitar o mundo e que, se o fazem, é por pura teimosia em não se deixarem morrer sem antes resistir à lógica do extermínio.
Se os rapazes detidos no hipermercado de Salvador fossem brancos teriam sido tratados dessa forma? Teriam sido entregues ao tráfico para serem aniquilados? Por que razão se age desse modo com as existências negras e indígenas e de forma completamente diferente com as brancas? Estamos todos igualmente expostos ao risco de sofrermos violência quando saímos de nossas casas e vamos para a rua resolver as nossas questões do dia a dia? Quando se entra num supermercado, quais vidas costumam ser monitoradas de perto, acompanhadas em seus passos durante o tempo de permanência no estabelecimento comercial?
Todos os dias milhões ou quem sabe bilhões de insetos são mortos por nós humanos. Trata-se de vidas? Sim, certamente. Insetos são formas de vida. Contudo, a morte de todos esses insetos não nos comove, não nos causa desconforto ético porque muitas vezes nós os temos como aborrecimentos, como animais que atrapalham as nossas vidas e por isso resolvemos exterminá-los. Lamentavelmente a lógica por meio da qual o racismo opera funciona em moldes semelhantes: alguns são gente, outros não. Ao mandar judeus, ciganos, pessoas LGBTQ e testemunhas de Jeová para as câmaras de gás, os nazistas acreditavam que estavam eliminando simples insetos repugnantes e não seres humanos. O nazismo, amparado numa profunda ideologia racista, eliminou a condição humana de suas vítimas.
Da mesma forma, ao condenar um escravo para morrer de tanto trabalhar, o sistema colonial assim o fazia porque por meio de intricados mecanismos de desumanização, os negros escravizados não eram apreendidos sob o signo do humano, mas do animal de carga, cujo sofrimento ou desgaste extremo não provocava tristeza e empatia em quem próximo dele se encontrava.
Por séculos, o colonialismo reinou no Brasil. E nos deixou como herança o racismo e as formas de desumanização que insistem em se fazer presentes entre nós. Um racismo que formatou nossos pensamentos e nossas sensibilidades. Um racismo que enquadra as vidas em dois blocos: aquelas para as quais dedicamos lamento e aquelas que nada significam para nós. Por mais que as pessoas insistam em negar seu racismo ao dizer que se trata de uma questão de preferência não gostar desse ou daquele grupo social ou étnico, o pano de fundo que opera nesses discursos é o do racismo e o racismo atua pela desumanização do outro, pela negação da condição humana do diferente. Não é uma simples questão de gosto. É algo mais profundo e mais perigoso. É a negação do outro como ser humano pleno.
No caso ocorrido em Salvador, o que se observa é a lógica que apreende o corpo negro como um mero corpo, uma mera vida, uma existência não merecedora de lamento ou de luto. Ao entregar os rapazes para serem mortos pelo tráfico, gerente e seguranças contavam com a não comoção, com o descaso, como a impunidade, crendo que seria como a morte de um cachorro de rua ou de uma barata que incomodava os clientes do estabelecimento comercial sob sua responsabilidade. É essa a lógica racista. Não se trata de um simples drama envolvendo a violação de uma propriedade privada. É mais do que isso.
Não sabemos se gerente e seguranças são negros. Se forem, isso só agrava ainda mais a situação, revelando-nos como a ideologia racista captura até mesmo corpos desumanizados, tornando-os cúmplices da “política do extermínio”, impedindo que haja qualquer lastro de empatia com o outro, com aquele que, já rendido, demandava a ação da lei e não a da criminalidade.
Para quem apoia a atitude dos funcionários do supermercado de Salvador (aliás, supermercados têm se tornado espaços muito perigosos para pessoas negras no Brasil), pergunto: o que te diferencia daquele gerente e daqueles seguranças? Ou: o que te torna diferente dos traficantes que torturaram e executaram os dois rapazes? Qual o ponto que faz com que você se diferencie desses traficantes/criminosos? Talvez seja a fronteira entre o desejo de matar e a “coragem” de fazê-lo. Ou seja, de um lado há quem aprove e aplauda o extermínio. Do outro, quem tem coragem de ir às vias de fato. Em linhas gerais, não há distinção entre um ponto e outro. Ambos os atores – o que deseja e o executa – integram a arquitetura do assassinato e do extermínio; fazem parte do mesmo jogo, da mesma lógica. São cúmplices na mesma empreitada, ainda que com diferentes gradações de participação no evento.
Aplaudir o que ocorreu com os rapazes Bruno Barros e Yan Barros é dar provas do nosso fracasso em nos tornarmos mais humanos e civilizados. É fechar os olhos para as desigualdades que assolam o Brasil e que vêm se acentuando ainda mais nos últimos anos. É chancelar o racismo e fingir que nesse país somos todos iguais.
O caso de Yan e Bruno só nos mostra o quanto Elza Soares tem razão: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Tão mais barata que valia menos do que os poucos quilos de carne de gado quase furtados no supermercado em Salvador.
Referências:
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Editora Civilização brasileira, 2015.
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
LUIZ, Bruno. Execução sádica de tio e sobrinho em Salvador atrela, outra vez, um hipermercado a racismo que mata. Disponível em El País. Acesso em 02 de abril de 2020.